Santa Maria, silêncio, solidão e saudade Publicada em
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Hoje é quarta-feira, dia 27 de Fevereiro. Acordei pela manhã, bem cedo, abri uma enorme janela que tenho em minha sala e fui encher meus pulmões com o ar puro que meu residencial muito arborizado propicia. Enquanto me espreguiçava para colocar o corpo em ordem para o início de um novo dia, eis que, deparei-me com um sol intenso que salientava o verde do campo e da mata, dando, nesta manhã um entorno estético para o espaço de minha moradia.

O nome do lugar onde moro é muito interessante, apropriado e mote para processos de criação no campo da estética. Jardim Lindóia é o nome do residencial onde fica minha confortável e simples morada. O verde é hegemônico aqui onde moro. Ipês, uma grande variedade de arvores e muitas flores nos acompanham em nossa cotidianidade.

Acordo pela manhã com um lírico cantar dos pássaros em revoada em busca de seus necessários alimentos. Tenho uma casinha em minha sacada que mora uma família de tico-tico. Como possuo folhagens com flores em minha sacada, que se avizinha com a mata ao lado recebo todo dia a visita de um beija-flor.

Desfrutando deste cenário que resume a dialética do bucólico com o moderno, depois de um pleno retorno a um novo dia, veio em minha mente que hoje é dia 27. Ao pensar no dia e no calendário dei-me conta que faz trinta dias que nos separam da tragédia que tornou incomensuravelmente triste e melancólica nossa amada “Santinha da Boca do Monte”. Trinta dias, no calendário, correspondem a 720 horas de tique-taques dos ponteiros de nossos relógios em movimento.

Trinta dias que partilho a estética do Jardim Lindóia e do canto dos passarinhos e, em contra partida faz 720 horas que perdemos mais de duas centenas de jovens no maldito incêndio na fatídica boate Kiss. Hoje faz trinta dias que um conjunto de jovens bonitos, felizes e amorosos perderam suas chances de futuro pela ganância, egoísmo e, principalmente, em nome do famigerado lucro.

Faz trinta dias que vivemos tempos de perplexidades, reflexões, revisões de conceito sobre a vida e, principalmente, com muita dor. Faz 720 horas, aproximadamente, que milhares de pessoas vivem no silêncio, no luto e sem compreender a incomensurável perda de vidas. Perda de vidas na flor da idade e com um imenso projeto de futuro. A irresponsabilidade e o egoísmo abortaram dos jovens que perdemos suas possibilidades de continuar felizes, nos fazer feliz e a perda total do futuro.

Faz trinta dias que esta tragédia colocou um manto de tristeza sobre as famílias dos jovens que não tiveram mais a chance de voltar para suas casas, terem beijinhos, carinhos e colinhos de paizinhos e mãezinhas. Faz trinta dias que as caminhas de nossos amorosos jovens continuam arrumadinhas, vazias e tristes. Seus livrinhos estão à espera de um confortável e romântico folhar. Nada estão ficando empoeirados, desolados, desconsolados e com a esperança extinguida. Não serão mais folhados e acariciados. Com a tragédia, estes livrinhos, perderam o sentido e, pela sabedoria que possuem, sabem que seus destinos são estantes frias de um “Sebo”. Perderam o elo com a vida e seus conhecimentos não dão conta de responder para onde foram seus amadinhos donos. Estes livrinhos chamam-se um horizonte e um deplorável mundo de saudades.

Quando eu penso em meu maravilhoso lugar de morada, o verde e a mata que cerca minha morada e o bando de passarinhos que me acordam com seu harmônico canto, eu dão-me conta que as famílias que perderam esses jovens não conseguem mais ter brilhos nos olhos para esta bonita, carinhosa, estética, singela e simples coisas que dão beleza para a vida cotidiana. Sem falar na quantidade de jovens que perdemos que extirparam suas chances de apreciar e ajudar na construção do belo com suas generosidades e seu grande amor pela vida e suas diferentes formas de serem alegres e felizes.

Faz trinta dias que os morros de nossa cidade perderam o encanto. Faz trinta dias que fica difícil passear pela Primeira Quadra da Bozzano. Faz 720 horas, aproximadamente, que nossas rodas de conversas são mediadas pela dor e a lembrança da tragédia. Nosso sentimento de perda transformou-se numa profunda e incurável forma de saudade. A única coisa que nos resta é transformar em solidariedade este silêncio, esta dor e essa triste e trágica despedida.

Eu estou de luto. A cidade de Santa Maria está sofrendo com as perdas e as dores de inesperada e indesejada partida. Nossos corredores na UFSM estão mais vazios. Nossas salas de aulas estão com muitas cadeiras vazias. O vazio tomou conta de nossas vidas. Vamos transformar nossa dor e luto em uma aguerrida vontade de luta. Luta pelo controle social das autoridades, do poder público e dos egoístas que não poupam esforços para cavar de forma absurda seu mundo do lucro.

Tenhamos esperança que este conjunto de jovens que partiram e, ao partir, partiram nossos corações transformem-se em estrelinhas para iluminar nossos corações e o coração de nossa “Santinha da Boca do Monte”. Para finalizar lembro versos de Cecília Meireles que diz: Recordai pelos ares o alvo incenso que sobe. Que diáfana paragem atingirá quem sofre? ... Pois o amor não é doce, pois o bem não é suave, pois amanhã como ontem, é amarga a liberdade.

Luiz Carlos Nascimento da Rosa (Professor do departamento de Metodologia do Ensino do Centro de Educação da UFSM)

Foto: Fritz R. Nunes
Assessoria de Imprensa da Sedufsm