50 anos depois, o legado de Martin Luther King SVG: calendario Publicada em 12/04/18 18h55m
SVG: atualizacao Atualizada em 12/04/18 20h05m
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Acompanhe a análise de quatro docentes sobre a contribuição à luta por igualdade

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Incendiário orador, Martin Luther King morreu assassinado aos 39 anos, em 4 de abril de 1968

Há 50 anos, em 4 de abril de 1968, morria assassinado em Memphis (Tennessee), aos 39 anos, o reverendo Martin Luther King Jr., até hoje uma lembrança importante para a causa dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. Passado meio século, qual a relevância deste pastor protestante, que atuava como advogado, mas que ficou conhecido, sobretudo, pela luta incansável contra a discriminação racial? Qual o legado do ativista que levava o nome do principal líder na dissidência da Igreja Católica, o alemão Martinho Lutero?

E mais: que paralelismo se pode fazer entre o ativismo de Martin Luther King e a atuação de expoentes negros na história brasileira? Essas questões, de forma mais ampla, foram feita pela assessoria de imprensa da Sedufsm a quatro docentes (duas mulheres e dois homens), que têm algum tipo de atuação junto ao movimento negro, ou que têm intimidade com a temática. Acompanhe uma síntese das respostas a seguir e, ao final desse texto, as perguntas completas e a íntegra das respostas.

Cecilia Pires, professora aposentada do curso de Filosofia da UFSM e também uma militante do movimento negro junto com o saudoso professor Sérgio Pires, considera que a atuação de Martin Luther King (MLK) foi fundamental para o avanço dos direitos civis dos negros em território norte-americano. Segundo ela, mesmo que não se tenha alcançado efetivamente uma “democracia racial” por lá, as ações do ativista “estimularam mais pessoas a lutarem por seus direitos e buscarem ocupar espaços públicos, de onde eram banidos”.

Na ótica de João Heitor Macedo, professor de História da rede pública e estadual e militante do Movimento Negro, “Luther King junto com Nelson Mandela, são os grandes expoentes de uma luta que transcende o espaço nacional, pois o legado da escravidão não é só do Brasil. Sua (de MLK) postura frente ao preconceito e à discriminação racial institucionalizada nos Estados Unidos merece destaque, pois ele se apresenta ao mundo como um lutador pela igualdade sem violência, desvelando para o mundo a truculência do Estado e um ímpeto moral que contagiava negros e brancos”.

Para a professora aposentada da rede pública estadual, Maria Rita Py, também doutoranda em Educação pela UFSM, “a visibilidade alcançada pelo Pastor King colocou-o na liderança do movimento negro norte-americano. Visionário, tinha por objetivo eliminar a segregação racial, através dos movimentos de massa, porque ele ‘tinha um sonho’, sonho este incorporado nos corações e mentes de afro-americanos, minorias étnicas e simpatizantes brancos, de todos construírem a nação americana, levando ‘a luta com dignidade, disciplina, e sem violência física’.”

Caiuá Cardoso Al-Alam, professor de História do campus de Jaguarão da Unipampa, também integrante do Grupo de Trabalho de Políticas de Classe para as Questões Étnico-Raciais, de Gênero e Diversidade Sexual (GTPCEGDS) do ANDES-SN, analisa que MLK “incendiou as contradições vividas naquele país e compôs a geração da década de 1960 que lutou por diferentes pautas importantes, como a contrariedade à Guerra do Vietnã, incorporando inclusive a ideia do amor ao próximo como elemento fundamental para o fim da desigualdade racial e social.” Para Caiuá, “mesmo empunhando a bandeira pacifista, (Luther King) foi um militante preenchido de radicalidade ao enfrentar a estrutura repressora do aparelho de estado norte-americano que estava espraiado pelo mundo na repressão aos movimentos e lideranças de contestação.”

Os referenciais brasileiros

Perguntados se o Brasil também tem expoentes similares a Martin Luther King, as respostas foram diversas, mas com a exemplificação de muitos nomes em comum. Para Cecilia Pires, “se pensarmos na figura de Zumbi, como um expoente da libertação negra, talvez pudéssemos comparar com a luta de Luther King, como princípio, mas não como dinâmica.” No entendimento da professora, “o que ocorreu é que os quilombos funcionaram como abrigos de proteção aos negros fugidos sem ter uma política de inclusão social, tornando-se muito difícil a acolhida dos negros no espaço dos brancos.” Diz ainda que “este reconhecimento de direitos, no Brasil, é muito recente e ainda falta muito para termos aqui a falada democracia racial. A política de cotas atesta essa desigualdade.”

Para João Heitor Macedo, a história brasileira é “singular” e possui muitos negros e negras que lutaram pela causa. Cita exemplos como: João Cândido, marinheiro negro de Encruzilhado do Sul (RS), líder da Revolta da Chibata em 1910, que lutou pela igualdade de tratamento e contra a violência dentro da Marinha brasileira revelando as desigualdades presentes dentro das instituições mesmo após a abolição da escravatura. Abdias do Nascimento, militante político, ator, escritor e intelectual do movimento negro, membro e líder da Frente Negra, primeira organização política do Movimento Negro. Lélia Gonzalez, educadora e antropóloga negra, que lutou pelo respeito à mulher negra. Fundou o Movimento Negro Unificado e teve uma profunda inserção no meio escolar e acadêmico.

Maria Rita Py comenta que é difícil estabelecer comparações entre realidades distintas como a dos Estados Unidos e a do Brasil. Segundo ela, em território estadunidense, “os afro-americanos enfrentavam os supremacistas brancos da Ku Klux Klan, leis segregacionistas do Jim Crow, agressões físicas, depredação de bens, enforcamentos e linchamentos; já no Brasil, precisávamos enfrentar a sólida construção do mito da democracia racial, que até hoje, continua encobrindo o racismo.” Nos Estados Unidos, diz ela, não houve uma ideologia de branqueamento e a sociedade não incorporou o mestiço, ao grupo branco, prevalecendo entre eles o preconceito de origem: “uma gota de sangue negro, te faz negro”; enquanto que no Brasil, o racismo é de marca, as pessoas são discriminadas por seus sinais fenotípicos.

Contudo, quando procura lembrar de expoentes, ela cita Abdias Nascimento, que teria sido a figura brasileira mais conhecida no exterior, pois morou e lecionou na Yale University e Wesleyan University, nos Estados Unidos. Nascimento, descreve ela, “participou de congressos e mostras de arte na América Latina, Continente Africano, Caribe e nos Estados Unidos. Ator, dramaturgo, político, participou da Frente Negra Brasileira; criou o Teatro do Sentenciado, quando esteve preso no Carandiru, nos anos 40, e ao deixar a prisão fundou o Teatro Experimental do Negro (TEN), curso que alfabetizou e preparou os primeiros atores e atrizes negros da televisão brasileira.”

Caiuá Al-Alam também diz que é difícil traçar comparações, mas que “assim como nos EUA, onde houve diferentes tipos de lideranças negras contestadoras, como por exemplo, a própria figura de Malcom X, no Brasil tivemos nossas referências. Lideranças que buscaram diferentes tipos de leitura da perversidade do racismo e das formas de luta contra esta desigualdade racial.” O historiador lista alguns nomes que considera importantes e da mesma geração de King, como Abdias Nascimento e Oliveira Silveira. Segundo Caiuá, “as mulheres foram fundamentais na resistência dentro dos EUA, como Angela Davis, e no Brasil, Lelia Gonzalez e Beatriz Nascimento.” Para o professor, “o povo negro é preenchido de protagonismo e a tarefa aos/as historiadores/as é visibilizar estas trajetórias protagonistas que até hoje são referências para a nossa militância.”

Igualdade e o fim da discriminação

Passados 50 anos, qual o balanço que se pode fazer em relação à luta pela conquista da igualdade entre negros e brancos, e do combate à discriminação racial?

Na reflexão de Cecília Pires, foi importante o avanço das leis, situando a discriminação como crime, mas que isso não basta para atenuar o preconceito e diminuir a desigualdade. Para ela, o pano de fundo é uma mentalidade formada no viés de dominação, em que os brancos são vistos como superiores aos negros. Segundo a professora, “esta diferença não se elimina com retórica e nem com decretos, mas pela via de uma atitude cotidiana de enfrentamento, de denúncia, de punição e de criação de novas mentalidades, como a compreensão do humano como espécie igual em valores comuns, como a vida e a liberdade.”

Conforme João Heitor Macedo, “temos muito pelo que lutar ainda.” Para ele, a igualdade objetiva ainda está muito longe de ser alcançada. “Vivemos ainda sob a sombra de um ‘Mito da Democracia Racial’, que desde o início do século XX, maquiou e escondeu os verdadeiros problemas raciais do Brasil.” Para o historiador, “o discurso intelectual, abraçado pelo Estado brasileiro, levou o mesmo a uma posição inerte e a uma passiva neutralidade quando se tratava das questões de desigualdade racial.” Todavia, João Heitor se diz otimista. “Penso que a luta secular do Movimento Negro começou a ser ouvida, e a chegada do século XXI trouxe consigo um novo momento com as políticas de ações afirmativas principalmente no campo educacional, com a Lei 10.639/03 e a Política de Cotas.”

Avanço e retrocesso

Maria Rita Py assevera que “apesar dos avanços alcançados a partir do Governo Lula, quando a temática racial passou a ser tratada como questão do Estado brasileiro, com a realização de duas Conferências Nacionais de Promoção da Igualdade Racial (2005 e 2010); aprovação das Leis 10639/03  e 11.645/08, que incluíram a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Indígena nos currículos escolares; aprovação da Política de Cotas para acesso ao ensino superior e em concursos públicos,  e de todas as políticas de inclusão social, implementadas, o cenário, hoje, é de retrocesso no tocante a avanços de políticas sociais e inclusivas.

Segundo ela, “o Relatório das Desigualdades de Raça, Gênero e Classe, produzido pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa da UERJ/2017, a partir dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/2011-2015), em pouco mais de 15 gráficos demonstra a preocupante exclusão social a que estão submetidos mulheres e negros nesse país. Mesmo sendo 55% da população brasileira, pretos e pardos estão em permanente desvantagem no tocante a rendimentos, escolaridade e distribuição em classe social.”

Na análise de Caiuá Al-Alam, “o povo negro é incansável no protagonismo da luta” e acrescenta que “em alguns países, avançamos nas políticas afirmativas, como no Brasil.” No entanto, ressalta, “políticas que ainda são incipientes e que na atual conjuntura vem sendo desmontadas pelo atual governo ilegítimo de (Michel)Temer e os governos reacionários situados nos estados e municípios.” Para o professor de História,  “é importante destacar que mesmo os governos de conciliação de classe mantiveram a exclusão racial, como podemos observar nos gritantes números a respeito dos assassinatos da população jovem negra e também ao contínuo aumento da carceragem deste mesmo perfil da população.”

Para o docente da Unipampa, “é inegável que avança a luta do povo negro e as poucas conquistas são resultados desses protagonismos.” Contudo, avalia como importante “sinalizar que ainda o Brasil vive profunda desigualdade racial, pois os números estão aí nas estatísticas de respeitadas instituições de pesquisa, e é preciso avançar.” Caiuá afirma que “as políticas de reparações no país ainda são tímidas e, estruturalmente, o estado nacional brasileiro continua a bancar esta desigualdade”.

Acompanhe a seguir a íntegra de perguntas e respostas

  Cecília Pires

Sedufsm- Qual a importância da luta de MLK para os negros? Qual o legado deixado por ele?

Cecília- Penso que a luta desenvolvida por Martin Luther King teve um significado substantivo para os negros norte-americanos. Ainda que não tenha se construído nos EUA uma democracia racial, muitas conquistas como os direitos civis expressam o acúmulo dessa luta levada por ele. O seu assassinato evidenciou a covardia dos inimigos, que manobrados pelo Estado burguês, branco e discricionário, decidiram calar sua voz, já que não conseguiam deter seus passos. Sua morte, ao invés de produzir um recuo entre a população negra, teve efeito contrário, estimulando mais pessoas a lutarem por seus direitos e buscarem ocupar espaços públicos, de onde eram banidos.

O legado de coragem no enfrentamento dos poderosos e de compromisso com a liberdade faz de Luther King não apenas um herói ou mártir, configurações ritualísticas, que ele não buscava. Sua figura pública se reveste da importância singular dos que lutam por uma causa coletiva, como denúncia de situações de aniquilamento e opressão.

Sedufsm-O Brasil tem, em sua história, algum expoente da luta dos negros que possa ser comparado a MLK?

Cecília- O Brasil viveu um idílio com a Lei Áurea que decretou uma libertação formal da escravatura, sem produzir as condições econômicas que assegurassem a efetividade de uma vida livre.

Se pensarmos na figura de Zumbi, como um expoente da libertação negra, talvez pudéssemos comparar com a luta de Luther King, como princípio, mas não como dinâmica. O que ocorreu é que os quilombos funcionaram como abrigos de proteção aos negros fugidos sem ter uma política de inclusão social, tornando-se muito difícil a acolhida dos negros no espaço dos brancos. Este reconhecimento de direitos, no Brasil, é muito recente e ainda falta muito para termos aqui a falada democracia racial. A política de cotas atesta essa desigualdade. Precisamos construir políticas públicas, que demonstrem que todos os cidadãos brasileiros são iguais, pois ainda que a Constituição Federal proclame isto, não há uma observância fiel à isonomia prevista no aspecto legal.

Neste sentido, difícil encontrar, no Brasil, um líder negro, com formação universitária, que tenha liderado uma guerra de posição face aos donos do poder. Houve, é certo, muitos estudiosos negros, homens e mulheres, que se envolveram na denúncia das violações de direitos e produziram estudos sérios sobre a escravidão no Brasil, o que serviu de suporte para as diferentes formas de luta dos movimentos negros brasileiros.

Confesso que o próprio termo afrodescendente soa como uma semiótica para atenuar o preconceito e parecer politicamente correto, embora não impeça ações discriminatórias, racistas e desiguais.

Sedufsm- Uma das bandeiras principais levantadas por MLK era a igualdade, o fim da discriminação dos negros. Qual a balanço que se faz da realidade hoje, quando nos referimos ao combate à discriminação e à busca de igualdade de direitos entre negros e brancos?

Cecília- As iniciativas dos militantes e estudiosos dos Direitos Humanos permitiram trazer o tema à cena da sociedade branca, de modo a situar a discriminação como crime, com sérias consequências. É evidente que isso não basta para atenuar o preconceito e diminuir a desigualdade, pois trata-se de uma mentalidade formada no viés de dominação, em que os brancos são vistos como superiores aos negros. Esta diferença não se elimina com retórica e nem com decretos, mas pela via de uma atitude cotidiana de enfrentamento, de denúncia, de punição e de criação de novas mentalidades, como a compreensão do humano como espécie igual em valores comuns, como a vida e a liberdade.

Quando ainda hoje vê-se anúncios de emprego, destacando a importância da boa aparência, sabe-se que a população negra não está aí contemplada. E até mesmo em concursos de beleza, se a candidata for negra, recebe toda sorte de retaliações por não representar, segundo seus detratores, o tipo de beleza desejável. Em se tratando de criminalidade então, o índice de negros presos e mortos por policiais prolifera em número acima dos brancos.

Esta estupidez preconceituosa, segregacionista e atrasada ainda está presente no século XXI, não só no Brasil, mas em muitos países do chamado mundo desenvolvido.

Há 50 anos mataram Martin Luther King. Seu corpo tombou, mas suas ideias de liberdade e igualdade permanecem. Destaco uma frase sua, das tantas que ele falou: “Aprendemos a voar como os pássaros e a nadar como os peixes, mas não aprendemos a conviver como irmãos”. Este ainda continua sendo o desafio para a conquista da igualdade e da liberdade.

João Heitor Silva Macedo

Sedufsm-Qual a importância da luta de MLK para os negros? Qual o legado deixado por ele?

João Heitor- Martin Luther King é um ícone, uma referencia mundial para o Movimento Negro. Junto com Nelson Mandela são os grandes expoentes de uma luta que transcende o espaço nacional, pois o legado da escravidão não é só do Brasil. Sua postura frente ao preconceito e a discriminação racial institucionalizada nos Estados Unidos merece destaque, pois ele apresenta-se ao mundo como um lutador pela igualdade sem violência, desvelando para o mundo a truculência do Estado e um ímpeto moral que contagiava negros e brancos. O legado de Martin Luther King serve de inspiração para negros e negras de todo o mundo, sua luta e sua trágica morte devem ser lembrados e ressignificados por militantes do movimento negro e dos outros movimentos sociais como uma reflexão necessária e motivadora para as lutas travadas na atualidade no campo social.

Sedufsm-O Brasil tem, em sua história, algum expoente da luta dos negros que possa ser comparado a MLK?

Com certeza sim. Nossa história é singular e temos muitos negros e negras que lutaram e lutam pela igualdade. Cito apenas alguns: João Cândido, marinheiro negro de Encruzilhado do Sul (RS), líder da Revolta da Chibata em 1910, que lutou pela igualdade de tratamento e contra a violência dentro da Marinha brasileira revelando as desigualdades presentes dentro das instituições mesmo após a abolição da escravatura; Abdias do Nascimento, militante político, ator, escritor e intelectual do movimento negro, membro e líder da Frente Negra, primeira organização política do Movimento Negro. Como parlamenta, lutou por uma educação antirracista e pela criação do dia da consciência Negra; Lélia Gonzalez, educadora e antropóloga negra, que lutou pelo respeito à mulher negra. Fundou o Movimento Negro Unificado e teve uma profunda inserção no meio escolar e acadêmico.  Estes são apenas alguns nomes entre tantos outros e só falando no século XX.

Sedufsm-Uma das bandeiras principais levantadas por MLK era a igualdade, o fim da discriminação dos negros. Qual a balanço que se faz da realidade hoje, quando nos referimos ao combate à discriminação e à busca de igualdade de direitos entre negros e brancos?

João Heitor- Temos muito pelo que lutar ainda. Penso que igualdade objetiva ainda esta muito longe de ser alcançada, vivemos ainda sob a sombra de um “Mito da Democracia Racial” que desde o início do século XX maquiou e escondeu os verdadeiros problemas raciais do Brasil. Mais do que isso, o discurso intelectual, abraçado pelo Estado brasileiro, levou o mesmo a uma posição inerte e uma passiva neutralidade quando se tratava das questões de desigualdade racial. Mas sou otimista. Penso que a luta secular do Movimento Negro começou a ser ouvida, e a chegada do século XXI trouxe consigo um novo momento com as políticas de ações afirmativas principalmente no campo educacional, com a Lei 10.639/03 e a Política de Cotas. As duas leis provocaram o debate público, deram visibilidade às demandas do Movimento Negro e criaram uma nova identidade na luta de negros e negras no Brasil. Uma nova militância Negra assumiu seu lugar de protagonista nas universidades, nas escolas e nos espaços públicos, vemos um orgulho de ser negro desfilando pelas cidades e isso é muito positivo. Enfim, estamos na rua, e continuamos lutando, pois há muito o que “sonhar” ainda.

Maria Rita Py

Sedufsm-Qual a importância da luta de MLK para os negros? Qual o legado deixado por ele?

Maria Rita Py- Entendo que Martin Luther (Martinho Lutero, em português) King foi o grande líder que mudou a história da conquista dos direitos civis americanos  Pastor da Igreja Batista, pacifista, aos 26 anos organizou um boicote aos ônibus da cidade de  Montgomery, onde era pastor, em protesto pela prisão e tortura da costureira Rosa Park (52), que se negou a ceder seu lugar a um passageiro branco. Naquela época, negros eram proibidos de conduzir ônibus e, quando passageiros, deveriam ocupar os últimos lugares dos coletivos, de acordo com as Lei Jim Crow, em vigor desde 1876. O boicote aos ônibus de Montgomery durou 382 dias, e somente foi suspenso após a Suprema Corte declarar a inconstitucionalidades das leis segregacionistas, que foram eliminadas totalmente, até 1965.

A partir desse primeiro boicote foram dezenas de marchas, protestos liderados pelo Dr. King e pelos defensores de direitos civis em todo o país: denunciava a segregação racial, exigia os direitos civis dos negros, o fim da guerra do Vietnã, a paz e igualdade entre todos os homens. O pastor percorreu “9,3 milhões de quilômetros por todo o país,  durante 13 anos, discursou em público cerca de 2.500 vezes, foi preso em mais de vinte ocasiões e, agredido fisicamente, ao menos 4 vezes”.

A visibilidade alcançada pelo Pastor King colocou-o na liderança do movimento negro norte-americano. Visionário, tinha por objetivo eliminar a segregação racial, através dos movimentos de massa, porque ele “tinha um sonho”, sonho este incorporado nos corações e mentes de afro-americanos, minorias étnicas e simpatizantes brancos, de todos construírem a nação americana, levando “a luta com dignidade, disciplina, e sem violência física”. As reivindicações engendradas por MLK resultaram em quebra de paradigmas, em mudanças que acabaram com o status quo, segundo  Adam Toren,  ao serem contempladas na Lei dos Direitos Civis, de 1964 e  na Lei do Voto, em 1965. Ele tinha um sonho e convocou afro-americanos para sonharem juntos, tornando-o realidade. Para comentaristas, seu discurso “I have a dream” entrou para a história como um arquétipo da luta pela paz mundial, em que todos se inundaram de autoestima positiva, sonhando juntos na para a conquista de seus direitos.

Sedufsm- O Brasil tem, em sua história, algum expoente da luta dos negros que possa ser comparado a MLK?

Maria Rita Py- É difícil estabelecer comparações, pois enquanto lá, afro-americanos enfrentavam os supremacistas brancos da  Ku Klux Klan, leis segregacionistas do Jim Crow, agressões físicas, depredação de bens, enforcamentos e linchamentos, no Brasil precisávamos enfrentar a sólida construção do mito da democracia racial, que até hoje, continua encobrindo o racismo. Nos Estados Unidos não houve uma ideologia de branqueamento e a sociedade não incorporou o mestiço, ao grupo branco, prevalecendo entre eles o preconceito de origem: “uma gota de sangue negro, te faz negro”; enquanto que no Brasil, o racismo é de marca, as pessoas são discriminadas por seus sinais fenotípicos.

MLK foi um líder mundial, do porte de Gandhi. Considero que Abdias Nascimento foi a figura brasileira mais conhecida no exterior, morou e lecionou na Yale University e Wesleyan University, nos Estados Unidos;  participou de congressos e mostras de arte na América Latina, Continente Africano, Caribe e nos Estados Unidos. Ator, dramaturgo, político, participou da Frente Negra Brasileira; criou o Teatro do Sentenciado, quando esteve preso no Carandiru, nos anos 40, e ao deixar a prisão fundou o Teatro Experimental do Negro (TEN), curso que alfabetizou e preparou os primeiros atores e atrizes negros da televisão brasileira. O TEN propunha-se a “trabalhar em prol da valorização do negro, através da educação, da cultura e da arte”. Exilado nos Estados Unidos, no final da década de 60, integrou-se a grupos afro-americanos, aderiu ao  Pan-Africanismo, viajando e palestrando por diversos estados americanos. Ao voltar para o Brasil, foi eleito deputado federal, depois senador pelo PDT, sendo o responsável, no Senado, pela indicação do Dia da Consciência Negra.

Sedufsm-Uma das bandeiras principais levantadas por MLK era a igualdade, o fim da discriminação dos negros. Qual a balanço que se faz da realidade hoje, quando nos referimos ao combate à discriminação e à busca de igualdade de direitos entre negros e brancos?

 Maria Rita Py- Apesar dos avanços alcançados a partir do Governo Lula, quando a temática racial passou a ser tratada como questão do Estado brasileiro, com a realização de duas Conferências Nacionais de Promoção da Igualdade Racial (2005 e 2010);  aprovação das Leis 10639/03  e 11.645/08, que incluíram a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Indígena nos currículos escolares; aprovação da Política de Cotas para acesso ao ensino superior e em concursos públicos,  e de todas as políticas de inclusão social, implementadas, o cenário, hoje, é de retrocesso no tocante a avanços de políticas sociais e inclusivas. O Relatório das Desigualdades de Raça, Gênero e Classe produzido pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa da UERJ/2017, a partir dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/2011-2015), em pouco mais de 15 gráficos demonstra a preocupante exclusão social a que estão submetidos mulheres e negros nesse país.  Mesmo sendo 55% da população brasileira, pretos e pardos estão em permanente desvantagem no tocante a rendimentos, escolaridade e distribuição em classe social. O desenvolvimento econômico não garantiu a redução das desigualdades raciais e racismo continua operando subliminarmente, mantendo os grupos minoritários numa situação subalterna.

Caiuá Cardoso Al-Alam

Sedufsm-Qual a importância da luta de MLK para os negros? Qual o legado deixado por ele?

Caiuá- Martin Luther King é uma referência mundial para o ativismo negro. Protagonista na reivindicação dos direitos civis ao povo negro, foi uma importante voz nos anos 1950 e 1960 nos EUA. Incendiou as contradições vividas naquele país e compôs a geração da década de 1960 que lutou por diferentes pautas importantes, como a contrariedade à Guerra do Vietnã, incorporando inclusive a ideia do amor ao próximo como elemento fundamental para o fim da desigualdade racial e social. Mesmo empunhando a bandeira pacifista, foi um militante preenchido de radicalidade ao enfrentar a estrutura repressora do aparelho de estado norte-americano que estava espraiado pelo mundo na repressão aos movimentos e lideranças de contestação. Esta radicalidade marcada em seus discursos que emocionavam milhões de pessoas é referência fundamental na denúncia do racismo e luta pelos direitos civis ao povo negro até hoje.

Sedufsm-O Brasil tem, em sua história, algum expoente da luta dos negros que possa ser comparado a MLK?

Caiuá- É difícil traçar comparações. Mas assim como nos EUA, onde houve diferentes tipos de lideranças negras contestadoras, como por exemplo, a própria figura de Malcom X, no Brasil tivemos nossas referências. Lideranças que buscaram diferentes tipos de leitura da perversidade do racismo e das formas de luta contra esta desigualdade racial. Podemos listar importantes nomes desta geração de King, como Abdias Nascimento e Oliveira Silveira. As mulheres foram fundamentais na resistência dentro dos EUA, como Angela Davis e no Brasil citamos Lelia Gonzalez e Beatriz Nascimento. O povo negro é preenchido de protagonismo e a tarefa aos/as historiadores/as é visibilizar estas trajetórias protagonistas que até hoje são referências para a nossa militância.

Sedufsm-Uma das bandeiras principais levantadas por MLK era a igualdade, o fim da discriminação dos negros. Qual a balanço que se faz da realidade hoje, quando nos referimos ao combate à discriminação e à busca de igualdade de direitos entre negros e brancos?

Caiuá- As gerações anteriores tiveram papel fundamental nesta luta pela necessidade do reconhecimento dos direitos civis dos/das negros/as. Acumularam avaliações e propuseram bandeiras e estratégias de luta que estão colocadas até os dias de hoje. Elementos como a exigência por políticas de reparação foram bandeiras construídas pelas gerações das décadas de 1960-70-80. O povo negro é incansável no protagonismo da luta.  Em alguns países, avançamos nas políticas afirmativas, como no Brasil. Políticas que ainda são incipientes e que na atual conjuntura vem sendo desmontadas pelo atual governo ilegítimo de Temer e os governos reacionários situados nos estados e municípios. Mas é importante destacar que mesmo os governos de conciliação de classe mantiveram a exclusão racial, como podemos observar nos gritantes números a respeito dos assassinatos da população jovem negra e também ao contínuo aumento da carceragem deste mesmo perfil da população. É inegável que avança a luta do povo negro e as poucas conquistas são resultados destes protagonismos. Mas é importante também sinalizar que ainda o Brasil vive profunda desigualdade racial, os números estão aí nas estatísticas de respeitadas instituições de pesquisa, e devemos avançar. As políticas de reparações no país ainda são tímidas. E estruturalmente, o estado nacional brasileiro continua a bancar esta desigualdade.

Texto: Fritz R. Nunes

Fotos: Divulgação e Arquivo/Sedufsm

Assessoria de imprensa da Sedufsm

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