Dívida pública impõe ‘equação desastrosa’ para o país, diz docente SVG: calendario Publicada em 28/11/19 16h23m
SVG: atualizacao Atualizada em 28/11/19 16h37m
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Luiz Fernando Reis, da Unioeste, diz que dívida drena recursos das áreas sociais e direciona-os aos rentistas

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Reis veio a Santa Maria, a convite da Sedufsm, no mês de outubro

 “Não dá para entender a crise do financiamento da educação, da saúde, da ciência e tecnologia sem levar em conta que isso faz parte de uma política macroeconômica colocada em prática no Brasil desde o governo de Fernando Henrique Cardoso, não sendo interrompida nem nos governos de Lula e Dilma”. E tal política econômica é calcada no sistema da dívida pública, que hoje consome dez vezes mais verba que aquela destinada às universidades públicas. A avaliação é de Luiz Fernando Reis, docente do Colegiado de Enfermagem da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), em Cascavel. Ele esteve em Santa Maria no dia 14 de outubro para dar início ao ciclo de debates promovido pela Sedufsm em referência ao aniversário de 30 anos da entidade (comemorados em 7 de novembro).

A palestra de Reis foi centrada na relação entre o pagamento da dívida pública e a escassez de recursos para a ciência e a tecnologia. Segundo o docente, é preciso enfrentar a ‘equação desastrosa’ responsável por drenar recursos de políticas sociais e direcioná-los ao pagamento de juros e amortizações de uma dívida que, operando conforme mecanismos ditados pelos próprios rentistas, parece feita justamente para não ser quitada. A tese de doutorado de Reis, intitulada ‘Dívida pública política econômica e financiamento das universidades federais nos governos Lula e Dilma (2003-2014)’ está disponível para leitura no site da Auditoria Cidadã da Dívida.

Alguns trechos da entrevista foram publicados na última edição do jornal da Sedufsm. A íntegra do bate-papo você confere agora.

Sedufsm - Segundo dados das tabelas disponibilizadas pelo senhor, o comprometimento do estoque e das despesas da União com a dívida pública cresceu exponencialmente no período entre 2003 e 2018. Enquanto em 2003 foram comprometidos 1.270.643.038.482 trilhão do orçamento da União com a dívida pública (incluindo juros, amortizações e refinanciamentos), em 2019 esse valor ficou em 1.456.295.470.601trilhão. E a projeção para 2020 é de que 1.654.422.246.919 trilhão do orçamento seja destinado à dívida. Por que essa dívida só aumenta?

Reis – A Auditoria Cidadã da Dívida tem denunciado os mecanismos ilegais que levam ao crescimento exponencial da dívida pública. Um deles é anatocismo: quando um governo não consegue pagar juros e amortizações da dívida, ele refinancia, emitindo novos títulos para refinanciar o montante da dívida que não conseguiu pagar. Então você faz uma dívida para pagar juros. O problema é a rolagem, então esse juro não pago é incorporado ao montante geral da dívida, gerando o juro sobre juro, ou seja, a incidência de novos juros sobre juros não pagos. O Supremo Tribunal Federal (STF) tem uma súmula dizendo que não se pode cobrar juro sobre juro. Apesar disso, o governo continua praticando isso.

Veja, tanto é verdade que essa é uma prática ilegal que em 2016 houve uma renegociação das dívidas dos estados, estendendo o prazo por 20 anos. Os governadores, antes de renegociar com o Michel Temer, tinham entrado no STF com uma medida judicial contestando a forma de cobrança de juros sobre juros, chamado juro composto. Tem uma decisão de caráter liminar no caso do Paraná dizendo que estava errada essa forma de calcular juro sobre juro, que era uma prática ilegal. Só para você ter uma ideia, o Paraná, ao invés de dever R$ 9 bilhões para a União, estaria devendo apenas R$ 1 milhão. O problema é que em junho de 2016 os governadores fizeram um acordo com Temer e retiraram a ação judicial. Isso mostra que existem mecanismos legais que o próprio STF reconheceu e infelizmente ninguém enfrenta isso. Por isso a dívida cresce de maneira exponencial, pois não foi feita para ser paga.

Não dá para entender a crise do financiamento da educação, da saúde, da ciência e tecnologia sem levar em conta que isso faz parte de uma política macroeconômica colocada em prática no Brasil desde o governo de Fernando Henrique Cardoso, não sendo interrompida nem nos governos de Lula e Dilma. Ou seja, a política econômica do Brasil tem como absoluta prioridade o pagamento da dívida pública. E a dívida funciona como um canal que drena recurso público para garantir a rentabilidade do setor financeiro, dos rentistas. Então ela não foi feita pra ser paga. Quando existe alguma dificuldade no pagamento da dívida, os governos tomam medidas no sentido de conter as despesas sociais para garantir, com absoluta prioridade, o pagamento dos juros e amortizações.

Veja, nós estamos vivendo o terceiro ano da Emenda Constitucional (EC) 95, que é um desastre. Quando o ministro do Temer, Henrique Meirelles, encaminhou a proposta (na época PEC), ele utilizou como justificativa a necessidade de garantir a capacidade de solvência do Estado. Ou seja, o governo Temer aprovou uma medida que retirou recursos da saúde, educação, ciência e tecnologia (dentre outras áreas) para garantir que o Estado brasileiro possa continuar alimentando a rentabilidade do setor financeiro. E é bom lembrar que a EC 95 congela as despesas primárias, mas não estabeleceu nenhum limite para as despesas financeiras, de forma que a despesa com a dívida pública continua tendo como limite o céu.

Fiz um cálculo percentual médio de 2003 a 2020 (lembrando que o orçamento de 2019 ainda é dotação inicial, não orçamento executado, e para o orçamento de 2020 estou utilizando a proposta orçamentária que Bolsonaro enviou dia 30 de agosto deste ano para o Congresso Nacional). Só com juros e amortizações da dívida foram comprometidos, de 2003 a 2020, 19,21%. Isso dá praticamente um quinto do orçamento federal. Enquanto isso, a saúde fica com 3,87% do orçamento e as universidades com 1,59%.

Enquanto a gente não discutir essa equação desastrosa não temos como reverter isso. No final de 2015, a Auditoria Cidadã conseguiu, pela primeira vez, aprovar, junto ao Congresso, a auditoria da dívida pública brasileira, que está prevista no artigo 26 das disposições constitucionais transitórias da Constituição Federal de 1988. Nenhum governo cumpriu isso. A Auditoria Cidadã da Dívida é um movimento que surgiu justamente para cobrar que os governos cumpram a Constituição Federal. Mesmo aprovada no Congresso, a Dilma vetou. Não queremos dar calote na dívida. A auditoria é um instrumento de gestão inclusive na iniciativa privada. Qual a ideia? Aquilo que a gente deve, a gente paga, e aquilo que tiver alguma ilegalidade a gente não paga.

É o que o Equador fez. Enquanto a gente não colocar no centro do debate a questão da dívida pública, não conseguiremos entender porque falta dinheiro para saúde e educação.

O sistema financeiro no Brasil é o mais lucrativo no mundo. Saiu uma pesquisa dos 20 bancos mais lucrativos do mundo, e 5 desses bancos estão no Brasil. Enquanto o povo morre na fila do hospital por falta de recursos, o setor financeiro tem a maior taxa de lucratividade do mundo.

Sedufsm – Na sua avaliação, por que não houve vontade política de nenhum governo em auditar essa dívida e romper com esse ciclo?

Reis - Infelizmente a chamada esquerda que chegou ao governo via PT não colocou na centralidade a questão da dívida pública. Lula, quando candidato à presidência em 1989, escreveu uma carta ao povo brasileiro dizendo que uma das questões fundamentais para resolver os problemas do país seria o enfrentamento à dívida pública, e inclusive propôs uma coalizão de países latino-americanos para enfrentar o sistema da dívida. Já na campanha eleitoral dele em 2002, nós temos a nova carta ao povo brasileiro, em que Lula diz ao setor financeiro: “cês fiquem tranquilos, pois os rentistas vão continuar a ganhar dinheiro, nós não vamos enfrentar o mecanismo da dívida”. E não é a toa que Lula vai buscar o Henrique Meirelles, deputado federal eleito pelo PSDB em Goiás, e, mais importante que isso, vice-presidente do banco de Boston, um homem que circulava no setor financeiro. Quando Lula trouxe o Meirelles para o Banco Central tivemos a prova cabal de que ele [Lula] tinha feito uma política de conciliação com o setor financeiro, dizendo o seguinte: “nós não vamos nos enfrentar”.

Desde FHC, todas as principais autoridades da área econômica (que ocupam o Ministério da Fazenda, a Secretaria do Tesouro Nacional, que cuida mais especificamente da execução do orçamento, e o Banco Central) são homens do mercado. Quando a Dilma se reelege e já está na situação de crise, vai tentar primeiro o Luiz Carlos Trabuco, do Bradesco, para ser ministro da Fazenda, e depois ela busca o Joaquim Levy, também vinculado ao Bradesco e que tinha passado pelo FMI. Então são os homens do mercado financeiro que ocupam os principais postos de direção da política econômica no Brasil. Na minha terra dizem o seguinte: você confiar a gestão da economia para os representantes do capital financeiro é a mesma coisa que você colocar uma raposa para cuidar do galinheiro. Nunca vai dar certo.

Os movimentos e partidos de esquerda abandonaram essa bandeira. O Rafael Correa, no Equador, não é um homem de esquerda, é um economista formado em Chicago, ministro de um governo de direita, e quando ele percebeu o que significava a dívida pública para o Equador, fez uma coisa simples: auditoria. E ele conseguiu, ao auditar a dívida pública, negociar com todos os bancos internacionais e pagar apenas 30% daquilo que os bancos alegavam que o Equador devia. O Equador não quebrou e, mesmo quando o governo chamou os credores internacionais e disse que só iria pagar 30% do que estavam cobrando, os bancos internacionais continuaram enviando empréstimos para o Equador.

Correa conseguiu enfrentar a dívida pública porque, durante a campanha eleitoral, ele colocou isso no centro dos debates. Aqui não. Aqui, mesmo com a eleição do governo democrático e popular, esse tema não foi tocado.

Poucas entidades colocam a dívida pública no centro do debate. Temos hoje a Auditoria Cidadã e a CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil] como entidades fortes que defendem a auditoria da dívida no Brasil.

Sedufsm - O negacionismo científico, presente em movimentos que defendem a teoria de que a terra é plana ou boicotam as campanhas de vacinação, teria como um de seus desdobramentos a desmoralização da produção científica nacional e, por consequência, a legitimação do corte nos investimentos públicos em ciência e tecnologia?

Reis - Vivemos a maior ameaça contra a universidade pública, o ensino superior, a ciência e a tecnologia. Nunca tivemos uma situação tão difícil de ser enfrentada. Temos dois fundamentalismos: de um lado, o fundamentalismo econômico do Paulo Guedes, um economista ultraliberal vinculado à Escola de Chicago, que defende a ausência quase que absoluta do Estado do ponto de vista do financiamento das políticas sociais; de outro lado, há um tipo de fundamentalismo representado por setores do governo, como o ministro da Educação [Abraham Weintraub], que acreditam que a terra é plana e têm uma campanha orquestrada contra a ciência. Como no Brasil as universidades públicas são responsáveis por 90% da produção científica, nós estamos na linha de tiro. Não é como no governo FHC [Fernando Henrique Cardoso], que as políticas em relação à universidade eram no sentido da restrição do financiamento. O Bolsonaro é pior que isso. Ele não quer apenas economizar dinheiro para as universidades públicas, ele quer destruí-las.

Então a mensagem muito clara que Bolsonaro está enviando para o complexo de ciência e tecnologia e para as universidades públicas é que ele quer nos destruir completamente. Não é apenas uma ação no campo econômico, no sentido de restringir o tal investimento público, é mais do que isso, é destruir completamente a universidade enquanto um espaço de produção da ciência e da crítica social. As universidades públicas, ao produzir ciência, também produzem um desvelamento, uma crítica aos fundamentos da sociedade mercantil. É isso que incomoda o Bolsonaro. É por isso que você vê essa campanha orquestrada contra as universidades. Infelizmente parte da população brasileira acredita. O que resta? Nós, professores, técnicos e estudantes não temos condições sozinhos de defender a universidade. Nós temos de buscar uma ampla aliança com setores dos movimentos sociais para defender a universidade pública, porque se trata de defender um projeto de país que seja republicano. Veja, estamos aqui correndo o risco de ver solapado o Estado Democrático de Direito, a república democrática burguesa. O que Bolsonaro está propondo é um profundo retrocesso do ponto de vista inclusive das conquistas liberais. Precisamos mostrar para a população que não somos um gasto desnecessário. Precisamos mostrar que os grandes problemas que eles enfrentam na saúde pública são resolvidos pela universidade a partir das pesquisas. Quem está produzindo solução para essas doenças que têm afligido a população brasileira? São os institutos públicos de pesquisa. Precisamos mostrar que os tímidos avanços que temos na área de saúde e educação, ou na perspectiva de pensar uma agricultura familiar que produza alimento para esse país e barateie o custo da cesta básica, depende fundamentalmente da produção de ciência que se faz pelas universidades.

Tem outro quadro dramático: me parece que as elites desse país, a classe dominante, estão dispensando a universidade púbica. Hoje você tem, cada vez mais, uma economia primarizada. O Brasil só vende minérios e soja. A agricultura moderna compra os pacotes tecnológicos prontos dos Estados Unidos, da Monsanto. Você tem cada vez mais o aprofundamento da dependência científico-tecnológica, e não serão as classes dominantes que vão defender as universidades. Isso está exigindo que a gente perceba o seguinte: não dá mais para a gente imaginar que vai ter uma burguesia nacional ilustrada que vai defender a universidade pública. Ou a gente consegue construir um amplo movimento popular de defesa da universidade pública ou seremos completamente destruídos.

O que existe é um projeto intencional de transferir o recurso publico pra garantir a rentabilidade do setor financeiro. Desde o final dos anos 60, a acumulação do capital se dá especialmente na esfera financeira. Inclusive com prejuízo para o tal setor produtivo, mas o setor produtivo no Brasil, nos países dependentes, é subordinado aos interesses do capital financeiro também.

Agora precisamos também fazer uma autocrítica. Ficamos certo tempo na universidade muito tranquilos em nossas salinhas, com ar-condicionados, produzindo nossos papers, enriquecendo nosso currículo Lattes. Isso é importante, mas me parece que precisamos fazer uma autocrítica profunda. A universidade pública hoje tem muito pouco peso social. Nós, pesquisadores, nos tornamos acadêmicos demais e intelectuais de menos. Se você toma o final dos anos 70 e o início dos anos 80, quem produziu teoricamente e propôs a construção do SUS [Sistema Único de Saúde]? Os departamentos de saúde coletiva das universidades públicas brasileira. Quem construiu fundamentalmente o capítulo da educação na Constituição de 88? Nós, professores, pesquisadores das universidades públicas, com os outros movimentos sociais, tínhamos um papel de intelectuais, não pensávamos apenas nos editais de pesquisa que vêm com a verbinha carimbada. Nós pensávamos nas grandes questões nacionais: como vamos melhorar a saúde da população brasileira? Como vamos produzir uma escola democrática diante da sociedade democrática que estamos construindo com o fim da ditadura militar? Penso que a universidade e os pesquisadores terão que voltar a construir uma pauta de pesquisa voltada às grandes questões nacionais.

Muitas vezes ficamos numa salinha distanciados dos colegas, dos estudantes e, pior que isso, distanciado da população em geral fazendo pesquisa. Muitas vezes um bairro no entorno da universidade tem problemas sérios e não estamos lá intervindo. Nos anos 70 e 80, estávamos no bairro para discutir saúde, transporte, educação, para fazer trabalho de alfabetização popular. A universidade vai ter que voltar a ter um contato mais efetivo com a população.

Quando a gente deixou de falar com a população, há 15 anos ou 20 anos, as igrejas pentecostais começaram a fazer um trabalho. Hoje eles chegaram aonde chegaram porque faz todo esse tempo que estão conversando com o povo. Levando uma mensagem ultraconservadora, mas estão lá ocupando um espaço de onde a gente saiu. Isso também explica um pouco nossa situação.

Entrevista concedida a: Bruna Homrich

Foto: Ivan Lautert

Assessoria de Imprensa da Sedufsm

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