A Gare SVG: calendario Publicada em 09/07/2020 SVG: views 4812 Visualizações

Nossa cidade tem uma relação complicada com sua memória. E o testemunho disso está no descuido com seu patrimônio histórico ou com a apagamento de personalidades que participaram de sua construção cultural. Prédios importantes, pelo valor arquitetônico ou por serem residência de próceres da comuna, foram postos abaixo em nome do progresso. Nomes de figuras que ajudaram a construir a história da cidade não merecem a distinção de identificação de logradouros públicos, preteridos por outros que pouco ou nada fizeram pelo Município. E agora, mais uma vez, em razão de um Edital com fragilidades jurídicas, vemos esta falta de cuidado para com a história da cidade, vinda do Poder Público. Existe o risco de que a Gare possa se tornar um centro comercial, em vez de ser uma referência cultural para Santa Maria.

A antiga Estação Férrea e seu entorno formam um significativo símbolo do desenvolvimento da nossa cidade. O eixo sul-norte, formado pela linha que a Rua do Acampamento e a Avenida Rio Branco, indica o nascimento de Santa Maria e a trajetória histórica de sua consolidação como um importante centro econômico e cultural do Estado. Tivemos dois grandes influxos econômicos neste período de 160 anos, desde a emancipação do Município. O primeiro, que ocupou metade do século XX, chegou com os trilhos da linha férrea e a presença dos ferroviários, com os escritórios, as oficinas, a Cooperativa e as escolas. O segundo, com a chegada da primeira Universidade Federal do interior do país, na segunda metade do século passado. Portanto, a Gare é um símbolo a ser preservado para fixar nas mentes e corações do santa-marienses a importância de sua origem. 

Vale destacar que o Coletivo Memória Ativa, através de alguns de seus membros, é um dos signatários da ação judicial que pretende suspender o Edital da Gare, a qual reúne outras entidades e cidadãos. Não somos contra a parceria com a iniciativa privada, pois entendemos que o Poder Público não tem condições de recuperar e manter aquele bem patrimonial. No entanto, nossa preocupação é que a destinação de adequado espaço para a cultura deve estar garantida no Edital. Quando da cessão do próprio da União para o Município, um dos pontos de destaque no documento é o uso cultural, educacional e turístico.

Não temos dúvida a respeito do potencial turístico daquele espaço – lamentável que tenhamos perdido o recurso para a implantação do trem turístico. Também a respeito do aspecto educacional, não há dúvida quanto ao conteúdo rico para uma educação sobre patrimônio histórico. Desse modo, de que Cultura estamos tratando? Não se refere simplesmente a um espaço gastronômico ou simplesmente comercial, mesmo que de produtos ligados à área. Estamos falando de cultura enquanto identidade, como acervo de bens, símbolos, signos materiais e imateriais da origem e do progresso da cidade. Material que consubstancia, na alma dos residentes, o sentido de pertencimento, elevando a sua autoestima cidadã.

O que estamos pleiteando não é que a Prefeitura deixe de realizar a chamada pública através do Edital. Mas que o refaça, chamando para elaborar uma proposta consequente com a Secretaria de Cultura, a qual sequer foi chamada a dar o seu parecer. Que respeite também os interesses comunitários, ouvindo as deliberações das instituições amparadas em lei municipal: Conselho do Patrimônio Histórico e Cultural e o Conselho Municipal de Política Cultural. Através deste diálogo, não havido previamente, será possível recuperar para a cidade um importante monumento de sua história, transformando-o em lugar aprazível e digno. Claro está que nos incomoda uma estrutura deteriorada, mas será irrecuperável um lugar cedido sem que mantenha o seu significado cultural para Santa Maria.

 

*Professor aposentado do departamento de Letras Vernáculas do Centro de Artes e Letras/UFSM. É escritor com vários livros publicados, tendo sido ainda secretário de Cultura de Santa Maria e presidente do Conselho Municipal de Cultura.

Sobre o(a) autor(a)

SVG: autor Por Orlando Fonseca
Escritor e professor aposentado do departamento de Letras Vernáculas da UFSM

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