Debate expõe as diversas roupagens da violência contra a mulher SVG: calendario Publicada em
SVG: atualizacao Atualizada em 14/06/18 17h18m
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Cultura na Sedufsm marcou o 8 de Março, Dia Internacional de Luta das Mulheres

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Quiséramos viver num mundo em que não houvesse violência contra a mulher. Infelizmente, tal como colocarmos um ratinho de pelúcia na ponta de um barbante para brincarmos com nosso gato de estimação – que, ao se aproximar da tão sonhada presa, vê-se dela distante novamente, uma vez que a puxamos pelo barbante -, a sociedade igualitária, quando parece que já está quase ao nosso alcance, também se afasta e volta à condição de perspectiva.  Mas, neste caso, quem é que puxa o barbante?

A 73ª edição do projeto ‘Cultura na Sedufsm’, ocorrida na noite da última quinta-feira, 8 de Março (Dia Internacional de Luta da Mulher Trabalhadora), buscou trazer algumas pistas para responder a esta questão. Com o tema “Violência para Além do Assédio”, a mesa de debate lançou reflexões sobre as diversas facetas da violência contra a mulher. Ao não se restringir à sua expressão física, ou seja, a golpes desferidos pelo homem contra a mulher, a violência de gênero, como fenômeno estrutural da sociedade em que vivemos, pode ser uma das principais responsáveis por não conseguimos “abocanhar” o novo amanhã.

Para a mesa de debate, coordenada pela diretora da Sedufsm, Fabiane Costas, seis mulheres foram convidadas: Bruna Fani, professora e integrante do grupo Mães na Luta contra a Violência Obstétrica; Gabriela Pozzebon, arquiteta que desenvolveu estudo sobre a estrutura das Casas-Abrigos para Mulheres em Situação de Violência; Nikelen Witter, professora de departamento de História da UFSM e estudiosa do movimento feminista; Fernanda Rodrigues, estudante do curso de Direito da UFSM; Gabriella Meindrad, aluna do curso de Direito da Fadisma e representante do movimento LGBTTI (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e intersexuais); Roseni Mariano, indígena kaingang e estudante do curso de Enfermagem da UFSM. A atividade ocorreu no auditório Suze Scalcon da Sedufsm.

Mãe de um anjo

É assim que Bruna Fani se denomina. O anjo é Vicente, seu filho falecido em abril de 2016, no Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM). Após uma gestação amada e bem vivida, inclusive com o acompanhamento de doulas (mulheres que auxiliam a gestante durante a gravidez), ela foi levada à Casa de Saúde para ganhar seu bebê. O desejo sempre havia sido parto normal, mas quando chegou o momento, ela sentia que o seu corpo não daria conta.  “Eu disse a elas [enfermeiras] que não conseguiria finalizar o parto. E fui brutalmente violentada. Eram seis mulheres profissionais em volta de mim me segurando e dizendo que eu não estava ajudando”, contou Bruna.

Quando nasceu, o silêncio em lugar do primeiro choro já supunha algo errado. Vicente havia sofrido asfixia e desenvolvera paralisia cerebral. Transferido para o HUSM, permaneceu 30 dias na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) Neonatal, e mais 15 na Pediatria. Faleceu no final de abril de 2016. E Bruna, tendo recebido o filho morto nos braços, desceu seis andares do hospital, sem qualquer acompanhamento profissional.

A mãe diz que teve acesso a muita informação durante a gravidez, período em que começou a perceber o não direito da mulher ao seu próprio corpo, já que, por exemplo, as constantes mãos que tocavam a sua barriga não gozavam de permissão, e as bocas a lhe darem conselhos e pitacos sequer haviam sido convocadas. “Mas a informação não nos protege do machismo que está institucionalizado nos nossos hospitais. A violência obstétrica e o luto materno ainda precisam ser muito trabalhados”, alertou Bruna, que conta ter sofrido, para além do parto, uma série de outras violações enquanto esteve internada.

Após a perda de seu filho, ela decidiu escrever um texto e compartilhar em seu Facebook. O relato viralizou e a rede social da mãe de Vicente converteu-se em espaço de denúncia. Milhares de mulheres escreviam, todos os dias, mensagens à Bruna, cujo depoimento pareceu tê-las motivado a romper o silêncio. Ainda em 2016, mesmo dilacerada pela dor da perda, Bruna e mais 150 mulheres foram às ruas de Santa Maria denunciar a violência obstétrica.

“Eu trago essa luta inclusive para dentro do cursinho onde dou aula, pois meus alunos que tentarão Medicina precisam saber disso”, conta a professora, chamando a atenção para a invisibilidade que acomete as mães de crianças especiais.

A partir do relato de Bruna, formou-se o grupo Mães na Luta contra a Violência Obstétrica, que, em 2017, incluiu para tramitação da Assembleia Legislativa gaúcha um Projeto de Lei contra a violência obstétrica. No último ano, essas mães também conquistaram, em Santa Maria, uma semana de conscientização sobre a violência obstétrica. “Depois de ter ido ao fundo do poço, eu me levantei com e por elas. Buscamos o respeito e só conseguiremos com união”, concluiu Bruna Fani.

Mulher negra

Fernanda Rodrigues é estudante do curso de Direito da UFSM e, no debate promovido pela Sedufsm, priorizou o resgate histórico acerca do povo negro e de sua condição escravocrata. Enquanto as mulheres brancas iam para as ruas reivindicar liberdades democráticas (como o direito ao trabalho), as mulheres negras há muito tempo já trabalhavam, não tendo sido jamais consideradas como “sexo frágil”, explicou Fernanda.

 Ao recomendar o livro “Mulher, Raça e Classe”, da autora feminista Ângela Davis, a estudante comenta trecho da obra que aponta para a negação do direito à família sofrido pelas mulheres escravas. Sua família era a da Casa-Grande. Seus filhos, separados ou vendidos. Elas, estupradas pelos patrões, então seus donos.

Esse passado escravagista reservado ao povo negro, embora por muitos considerado superado, repercute até hoje. Exemplos são os altos índices de violência contra as mulheres negras, vítimas de mais de 50% dos estupros registrados no Brasil e principal alvo do tráfico de pessoas. No mundo do trabalho, relata Fernanda, ocupam, em sua maioria, cargos de subalternidade; a muitas, o caminho parece ser a prostituição.

“A mulher negra sempre teve seu corpo objetificado e, por isso mesmo, não é valorizada para relacionamentos sérios. É escondida e preterida, inclusive pelos próprios homens negros. É ela que mais sofre com o feminicídio e está mais propensa a vivenciar relacionamentos abusivos”, diz Fernanda. Uma vez que não é fácil para a mulher negra ter um relacionamento sério, quando ela embarca em um, tende a se agarrar a pessoa, mesmo que essa a maltrate.

“Muitas pessoas dizem que as mulheres continuam porque gostam de apanhar. Mas não é isso. Ela não é apoiada para, efetivamente, sair daquele relacionamento”, critica a estudante de Direito, que em 2017 foi vítima de crime racista visualizado nas paredes do Diretório Livre do Direito da UFSM.

O cenário de desigualdade vem adoecendo cada vez mais mulheres negras, constata Fernanda, referindo-se ao sofrimento psíquico desencadeado quando machismo e racismo se unem. A estudante também criticou o fato de as mulheres negras só se convidadas a integrarem mesa de debates quando a pauta é opressão. “Eu, por exemplo, pesquiso sobre feminismo na internet, mas nunca fui convidada a falar sobre isso”, refletiu, destacando a importância de negras e negros serem convidados a falarem sobre os temas que pesquisam.

Casas-Abrigo

Casas-Abrigo são um projeto institucional voltado à proteção das mulheres em situação de violência. Nesses locais, elas ficam acompanhadas de seus filhos por até quatro meses. O objetivo é, além de proteger, auxiliar essas mulheres a reconstruírem sua cidadania e o convívio social perdido devido à violência doméstica.

A explicação veio da arquiteta Gabriela Pozzebon, que, em seu trabalho de conclusão de curso na UFSM, elaborou um projeto de casa-abrigo para sua cidade natal, Barros Cassal. A escolha da estudante pelo local ocorreu por dois motivos: por ela considerar importante, como estudante de uma universidade pública, oferecer uma devolutiva à sociedade; e porque sua pequena cidade, de 11 mil habitantes, registra de 4 a 5 denúncias de violência doméstica por semana. Número altíssimo para uma cidade desse porte.

O nome do projeto de casa-abrigo de Gabriela: Morada Fogo. Morada para trazer a ideia de que, além de permanecerem ali enquanto estiverem em situação de risco, as mulheres possam ser seus próprios lares. Fogo porque é um elemento que indica transformação.

“Os espaços são de extrema importância para o convívio das mulheres. Mas não existe essa preocupação nas casas-abrigo brasileiras, em sua maioria instaladas em prédios alugados, onde permanecem por uma media de três anos. Nesses lugares, as mulheres precisam ver que a vida pode ser melhor e que é possível romper com a situação de violência. Os espaços precisam oportunizar a convivência entre as mulheres e seus filhos”, explica Gabriela. Por isso, o projeto por ela desenvolvido compreende desde atendimento psicológico, jurídico, médico, até oficinas profissionalizantes para as mulheres.

Violência contra transexuais e travestis

Somente em 2017, o Brasil registrou 179 mortes de travestis e transexuais, número que corresponde a um assassinato a cada 48 horas. 74% dessa população já sofreu abuso ou violência. 90% está na prostituição. A contradição? Embora seja um dos países que mais mata trans e travestis no mundo, também é o que mais consome pornografia com pessoas assim identificadas. Os dados foram trazidos por Gabriela Meindrad, estudante de Direito da Fadisma e representante do movimento LGBTTI (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e intersexuais).

Hoje ainda vigora um determinismo do sexo biológico, em detrimento da orientação sexual. “Identidade de gênero é como tu te percebes, independente do teu sexo biológico”, explica Gabriela. Contudo, nem as instituições, sem seus profissionais estão preparados para lidarem com pessoas transexuais. Isso leva a estudante a acreditar que, mesmo senso alcançadas legislações protetivas a essa população, essas só surtirão efeito se houver uma sensibilização por parte das pessoas.

E essa postura sensível e empática, diz Gabriela, tem de ser trabalhada nos cursos da área da saúde. Em Santa Maria, por exemplo, por não haver endocrinologista que atenda as transexuais, muitas recorrem à automedicação, estando assim passíveis a vários riscos.

“Nós, trans, somos reféns da falta de preparo dos profissionais. É necessário fazer o debate de gênero na educação, porque o desconhecimento causa preconceito. Como dizia Nelson Mandela, nenhuma pessoa nasce preconceituosa. E eu acredito na mudança para melhor”, reflete Gabriela.

Se antes as transexuais eram vistas majoritariamente à noite, em decorrência da prostituição, hoje elas já vêm ocupando mais espaços na sociedade, conta a palestrante. Porém, diversos ainda são os obstáculos, a exemplo da dificuldade para se obter o nome social nas universidades. E, quando obtido, a dificuldade de ser respeitado. “A evasão é muito grande por causa disso”, atesta.

Outra dificuldade destacada por Gabriela é a morosidade que enfrentam as solicitações de processo cirúrgico via Sistema Único de Saúde. Em geral, o processo se delonga por 12 anos, levando a mutilações por parte das pessoas trans.

“Precisamos de um olhar mais fraterno em relação às pessoas”, conclui a estudante de Direito, que participa de projetos relacionados a gênero e sexualidade.

Mulher indígena

Quem também participou da 72ª edição do ‘Cultura na Sedufsm’ foi Roseni Mariano, indígena kaingang estudante do curso de Enfermagem na UFSM. Ela também é membro, desde 2014, da Comissão de Implementação e Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas de Inclusão Racial e Social da UFSM.

Num relato corajoso, Roseni contou já ter presenciado seu pai batendo na mãe e também já ter sofrido agressão física de seu companheiro. “Quando você se cala é porque não tem amparo. Dentro da UFSM eu aprendi bastante. Mas violência também é quando te olham diferente, e eu sinto isso em sala de aula.

A estudante kaingang casou aos 14 anos, porém conseguiu se separar e hoje diz se sentir mais forte. Para ela, independente da cultura, as mulheres guardam em comum a necessidade de não ficarem quietas perante a violência.

“Ano passado uma aluna indígena se formou em Medicina. Eu quero me formar e voltar para a minha aldeia. Essa cultura de somente o homem poder falar está mudando, mas não é fácil garantir direitos em uma universidade que ainda é muito conservadora”, reflete Roseni, e conclui: “nós, mulheres de todas as culturas, se quisermos fazemos uma revolução”.

Um feminismo de escuta

Encerrando o debate da última quinta-feira, a professora do departamento de História da UFSM, Nikelen Witter, ponderou que o feminismo precisa é se escutar. “Não posso minorar o que outras mulheres sentem, mesmo que eu não tenha sentido aquilo exatamente. Estamos cercadas por micro opressões e micro violências. A quantidade de vezes que as mulheres são criminalizadas me faz ver que nenhuma de nós está segura”, disse a docente.

E ela acredita que a sua tarefa como educadora e pesquisadora é instrumentalizar as pessoas para “desnaturalizar as certezas” e questionar conceitos que se convertem em prisões. “Seria egoísmo se eu não usasse as armas do meu saber para dar armas a outras mulheres”, opinou Nikelen, que coordena o Grupo de Estudos e Extensão Universidade das Mulheres (Geeum@), vinculado ao departamento de História da UFSM, porém com a participação de mais 18 cursos e também de membras da comunidade externa. As reuniões ocorrem a cada 15 dias e o objetivo futuro do grupo é construir pontes entre os diversos grupos feministas que atuam em Santa Maria e, muitas vezes, permanecem isolados e sem diálogo.

“É preciso reconhecer nossos privilégios e amparar cada uma das mulheres que estão ao nosso lado. Nossas armas são o conhecimento e andar juntas”, concluiu a docente.

Às intervenções das participantes da mesa, abriu-se o debate entre os presentes. Fabiane Costas, direta da Sedufsm e mediadora da mesa, trouxe alguns números: 4.473 homicídios de mulheres em 2017 (desses, 946 tipificados como feminicídios); a cada duas horas, uma mulher é morta; no Rio Grande do Sul, de 1,1 a 1,5 mulheres são mortas a cada duas horas.

*Quem quiser saber mais sobre os projetos citados nesta matéria, pode seguir a página de Facebook Mães na Luta contra a Violência obstétrica e solicitar participação no grupo de Facebook GEEUM@ - Grupo de Estudos e Extensão Universidade das Mulheres.

**Outro projeto, comentado por Bruna Fani, é o Grupo de Mulheres Amor, Movimento e Dança, que objetiva empoderar as mulheres a partir da dança, estimulando o autoconhecimento, a quebra de padrões e o afeto entre as mulheres. O grupo está com uma campanha de financiamento coletivo para oportunizar um espetáculo no Theatro Treze de Maio. Quem desejar contribuir, acesse aqui.

 

Texto: Bruna Homrich

Fotos: Fritz Nunes

Assessoria de Imprensa da Sedufsm

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