Trauma da Kiss oportunizou criação de curso de ciências da religião na UFSM SVG: calendario Publicada em
SVG: atualizacao Atualizada em 26/01/21 17h09m
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Vice-coordenador fala sobre importância do curso, que teve formatura da primeira turma em janeiro

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Noeli Rossato (e),coordenador do curso, Liolene Sayonara (tutora em Quaraí) e Amarildo Trevisan

Na sexta-feira, 15 de janeiro, foi a formatura da primeira turma de licenciatura em Ciências da Religião da UFSM, em convênio com a Universidade Aberta do Brasil (UAB). Formaram-se 44 profissionais vinculados aos polos de Quaraí, São João do Polêsine, Cacequi, São Francisco de Paula e Constantina.  O curso, que é o primeiro a ser realizado em universidades públicas federais do sul do país, teve como origem uma demanda surgida em 2013, após a tragédia da Boate Kiss, que levou à morte de 242 pessoas, em sua maioria, jovens, sendo muitos, inclusive, estudantes da UFSM.

O curso está vinculado ao Departamento de Fundamentos da Educação do Centro de Educação da UFSM. É uma experiência gestada a partir do projeto de pesquisa desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da UFSM sob o título “Catástrofe, Trauma e Resistência: a Experiência Estética na Formação de Professores”, aprovado no Edital Universal do CNPq, de 2013 a 2016.

A tragédia da boate Kiss causou um trauma coletivo, não apenas em Santa Maria, mas em diversas localidades em que famílias sofreram perdas de vidas. O curso teve justamente o objetivo de melhorar a autoestima da cidade e da própria Universidade, abalada pela tragédia. Mas, para criá-lo, o projeto que deu origem ao curso buscou depoimentos de alunos e professores de escolas, entrevistou autoridades ou mesmo pessoas leigas, que vivenciaram de perto a tragédia e que atuaram no socorro às vítimas.

Ocorreram ainda entrevistas com professores que tiveram perdas de alunos em suas turmas na Universidade, para saber o que modificou depois do ocorrido, em seu cotidiano pedagógico. Os resultados das entrevistas trouxeram à tona a importância da religião na vida das pessoas, no sentido da busca de uma explicação e forma de resiliência para interpretar e dar um sentido ao sucedido.

O profissional habilitado na área poderá atuar também na assessoria a movimentos sociais, empresas, comunidades de base, igrejas e partidos políticos, entre outras instituições, fomentando o cultivo da espiritualidade com vistas à elaboração das adversidades com valores como respeito, tolerância, reconhecimento e inclusão social.

A assessoria de imprensa da Sedufsm foi buscar mais informações a respeito do curso e, também, aproveitou para questionar alguns aspectos como por exemplo, a importância desse curso para a comunidade, a relação entre ciência e religião; a universidade como espaço laico e que passa a tratar de temas ligados à religião. As respostas foram dadas pelo vice-coordenador do curso, Amarildo Trevisan, professor vinculado ao departamento de Fundamentos da Educação da UFSM, também pesquisador do CNPq.

Pergunta- Por que a UFSM decidiu criar esse curso?

Resposta- O curso de Ciências da Religião da Universidade Federal de Santa Maria surgiu em convênio com a Universidade Aberta do Brasil (UAB), tendo sido aprovado para ser desenvolvido em 5 polos do Rio Grande do Sul, tendo formado recentemente a sua primeira turma, composta de 44 alunos, com pleno êxito. Não poderia deixar de mencionar, num tempo de tantos ataques à pesquisa acadêmica, à própria educação e à ciência, que este curso é resultado de um projeto de pesquisa, que teve origem a partir do acontecimento da boate Kiss, com o intuito de levantar a autoestima da nossa cidade e da própria universidade, abalada pela tragédia.

O projeto de pesquisa foi coordenado por mim, e desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Educação, da UFSM, sob o título “Catástrofe, Trauma e Resistência: a Experiência Estética na Formação de Professores”, aprovado no Edital Universal, do CNPq, de 2013 a 2016. Junto com estudantes de mestrado, doutorado e pós-doutorado que auxiliaram a desenvolver o projeto, escutamos o depoimento de alunos e professores de escolas e, ainda, entrevistamos autoridades ou mesmo pessoas leigas que vivenciaram de perto a tragédia da boate Kiss e que atuaram no socorro às vítimas.

Por fim, entrevistamos também professores que tiveram perdas de alunos em suas turmas na Universidade Federal de Santa Maria - UFSM, para saber o que modificou, depois desse fato, em seu cotidiano pedagógico. Ao nos deparar com os resultados das entrevistas percebemos o quanto a religião tinha importância na vida dessas pessoas, no sentido da busca de explicação, e como forma de resiliência, para interpretar e dar um sentido ao ocorrido. Diante disso, percebemos que não haveria outro caminho, senão oferecer um curso nessa área para formar professores com o intuito de atuar no Ensino Religioso, com vistas à elaboração das adversidades, cultivando valores de respeito, tolerância, reconhecimento e inclusão do outro. E também, como alternativa viável de tornar a discussão do tema da religião mais presente nos debates do dia-a-dia da Universidade.

Pergunta- Quantos docentes envolvidos? Qual a duração do curso?

Resposta- O curso tem duração de 4 anos, tendo se iniciado em 2017 e concluído sua primeira turma em 2020, sendo desenvolvido nos polos de Quaraí, São João do Polêsine, Cacequi, São Francisco de Paula e Constantina, todas cidades do nosso estado do RS. Quanto aos docentes e tutores do curso, eles foram selecionados mediante processo seletivo, sendo alguns internos da UFSM e outros de instituições externas, como acontece em todos os cursos ofertados pela Universidade Aberta do Brasil nas instituições universitárias de nível superior públicas.

Alunos do Polo de Quaraí


Pergunta- Qual a importância de um curso desse tipo para a comunidade?

Resposta- Logo depois que o projeto do curso de Ciências da Religião foi aprovado em reunião do meu departamento de Fundamentos da Educação, fui procurado pelo professor Jorge Cunha, meu colega, que já havia sido diretor de nosso Centro de Educação por duas vezes seguidas, para informar que sabia da existência de uma série de documentos que ele faria chegar às minhas mãos. Estes documentos, na verdade, eram registros de outras iniciativas que haviam sido tomadas nas suas gestões, para preencher esta lacuna na área de Ensino Religioso. A partir da análise dessa documentação, percebi que houve outras iniciativas com o mesmo objetivo no Centro de Educação. Uma delas, inclusive, trazia assinaturas, protocoladas em atas, de prefeitos e secretários de educação de municípios do nosso estado se comprometendo com a implantação de cursos de graduação e/ou de especialização na área de Ensino Religioso. Ou seja, não se tratava de uma iniciativa isolada ou do acaso, mas algo que vinha sendo gestado ao longo de um processo de amadurecimento da discussão em nosso Centro de Educação da UFSM. Além disso, o Rio Grande do Sul estava atrasado em relação à Santa Catarina, Pará e outros estados da federação, em oferecer um curso de graduação para formação de professores de ensino religioso escolar. O estado, em grande maioria, ainda aplicava a lógica de relegar o Ensino Religioso aos professores que precisavam complementar a carga horária, ao invés de levar essa unidade escolar com a seriedade solicitada pela legislação brasileira, não só a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96), como também a BNCC. Convém salientar a esse respeito que o Ensino Religioso, objeto deste curso, é uma das cinco áreas definidas como prioritárias pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e carece de profissionais licenciados na área de Ciências da Religião. Com isso, em muitas escolas ou o Ensino Religioso era e ainda é dado de qualquer jeito por professores que não têm interesse acadêmico na temática, ou era (é) dado sem critérios, por docentes que embora fossem preparados para ensinar as suas disciplinas, não tinham qualificação técnica para ensinar especificamente sobre o tema da religião em um estado laico.

Diante disso, refleti com os meus colegas da equipe proponente, o quanto tivemos sorte ou a felicidade, não vem ao caso, pois esta foi de fato a primeira iniciativa que o Centro de Educação conseguiu colocar efetivamente em prática nessa área, na sua história. Talvez não fosse apropriado achar que isso aconteceu por obra do acaso ou da competência, mas fundamentalmente porque houve ambiente propício, em função do ocorrido na boate Kiss, que vitimou muitos alunos da UFSM, e também em função dos apoios importantes recebidos nesse sentido para a criação do curso.

Pergunta- Quando se fala em "religião" em uma universidade pública logo vem à mente aquela ideia de que a instituição é laica, etc. Um curso de "ciências da religião" não rompe essa ideia de laicidade acadêmica?

Resposta- É preciso destacar que, no decorrer desses quatro anos, temos recebido muitos pedidos de reoferta do curso tanto por parte de profissionais vinculados ao ensino, como também de líderes de comunidades religiosas de distintas designações. Ou seja, há uma demanda real que está batendo a porta da universidade e não é de hoje. Além disso, cabe destacar que não se trata de um curso de Teologia, cuja matriz é de natureza confessional. Ou seja, a CAPES declara que Teologia é algo confessional ou, pelo menos algo orientado por uma tradição religiosa específica. Já a Ciências da Religião é um estudo sobre as religiões, sem ter compromisso dogmático com nenhuma delas e sem ser orientada por nenhuma religião em especial. Em outras palavras, cientistas da religião não respondem a hierarquia eclesiástica de nenhuma igreja, nem partem de uma tradição específica como base para seus estudos, como fazem os teólogos. Essa distinção já é suficiente para entendermos que existe uma diferença entre estudar uma religião enquanto parte dela (Teologia), e estudar religiões sem privilegiar nenhuma. A proposta de Ciências da Religião (CR)., portanto, é justamente uma expressão de laicidade acadêmica, e não o contrário. Como a CR ainda não é amplamente conhecida na sociedade brasileira, é comum as pessoas acharem que CR e Teologia são sinônimas, quando na verdade não são. Pessoas que não conseguem reconhecer metodologicamente que existem muitas religiões e que precisam suspender seus próprios valores e dogmas religiosos para fazer o seu trabalho não podem ser consideradas cientistas da religião. Por fim, existem cursos de CR nas cinco regiões do Brasil, e tanto IES municipais (Faculdade de São José, em Santa Catarina), estaduais (UNIMONTES, UEPA, UERN) quanto federais (UFPB, UFJF, UFS) possuem graduações em CR, e não apenas universidades particulares confessionais. O curso da UFSM está longe de ter sido o primeiro no Brasil. Fomos apenas o primeiro da região Sul em uma universidade federal. Nesse sentido, a região Sul está bastante atrasada em relação ao resto do país, e a UFSM está sendo pioneira ao trazer essa formação para o estado. Além disso, os primeiros cursos de CR surgiram em universidades públicas justamente por recomendação do Estado, para garantir a laicidade na universidade pública em lugares e momentos em que originalmente se queria abrir cursos de Teologia nessas instituições. Isso aconteceu na Universidade Federal de Juiz de Fora já na década de 1960, por exemplo, quando a Igreja Católica tentou criar uma graduação em Teologia e recebeu parecer negativo das Secretarias de Educação. Entretanto, o Estado disse não estar fechado para a discussão acadêmica sobre religiões, e sugeriu que um curso em “ciência das religiões” (com “ciência” no singular e “religiões” no plural) fosse aberto na época ao invés de um de Teologia. Hoje o curso da UFJF é o mais antigo do Brasil, e eles possuem tanto bacharelado quanto licenciatura, mestrado e doutorado na área.

Pergunta- O ambiente acadêmico é muito voltado às ciências que, de alguma forma, procuram se manter longe de um viés de religiosidade. Há uma mudança na universidade em relação a isso? É compatível ciência e religião?

Resposta- Existe uma visão popular errônea de que religião e ciência são inimigas. Essa visão não condiz com o cotidiano da universidade. A história da antropologia está intimamente relacionada ao estudo da religião. Frazer, Malinowski, Lévi-Strauss, autores muito importantes dessa disciplina, estudaram religiões. Durkheim e Weber, pais fundadores da sociologia, são justamente muito conhecidos por terem estudado religiões. “A ética protestante e o espírito do capitalismo” é uma das principais obras de Weber, que fala sobre o impacto econômico causado pelo protestantismo calvinista na sociedade dos Estados Unidos. “As formas elementares da vida religiosa” é uma das maiores obras de Durkheim, sendo fonte de discussões na sociologia até hoje. Mesmo na psicologia, uma área que tem maiores ressalvas a respeito da religião, temos Freud, o pai da psicanálise, escrevendo mais de uma vez sobre religião. Acredito que o que o mundo acadêmico procura manter clara é a distinção entre “pesquisar sobre religiões” e “fazer religião”. Estudar um objeto é diferente de fazer parte dele. Esta é a diferença entre ser “pároco da aldeia” e ser pesquisador de religião, por exemplo. Um outro exemplo, os brasileiros podem ser fluentes em língua portuguesa, mas existe uma diferença óbvia entre ser falante do idioma e ser um linguista. Do mesmo modo, eu posso me tornar linguista de um idioma que não é meu idioma original. É mais ou menos o mesmo que ocorre na CR. Eu ser adepto de uma religião não é o mesmo que eu ser cientista. Um padre, por mais que seja especialista religioso no catolicismo, se não tiver formação técnica acadêmica não pode dizer que sabe pesquisar cientificamente o catolicismo. Essa é a distinção que a academia quer preservar. Mas dizer que não se pode estudar religião na academia é um equívoco. Também é importante frisar que a ciência por si só não responde a todos os anseios da vida humana, já que o ser humano é multidimensional por excelência. Como já dizia as sábias palavras de Paulo Freire, “A educação necessita tanto de formação técnica, científica e profissional, como de sonhos e utopias”. Ou seja, uma educação que não responda ao desejo de esperança por um mundo melhor é cega. A esperança sem ação é ingênua, já a ação sem a esperança no horizonte é vazia. Os homens encontram o seu sentido ao viver no cotidiano o esperançar. Esse o papel do estudo das religiões, a meu ver. É manter acesa a chama de esperança de um mundo melhor para os que sofrem, que são vítimas de preconceitos, são subalternizados ou excluídos por um mundo que lhes nega inclusive a capacidade de sonhar.

 

Texto e entrevista: Fritz R. Nunes com informações do Portal da UFSM
Fotos: Arquivo pessoal
Assessoria de imprensa da Sedufsm

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