Jornalistas que cobriram caso Kiss: “um divisor de águas” SVG: calendario Publicada em
SVG: atualizacao Atualizada em 26/01/21 21h34m
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Carlos Wagner e Humberto Trezzi falam sobre o que significou para eles investigar causas da tragédia

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Primeiro ano da tragédia da Kiss, em 27 de janeiro de 2014

Para quem estava em Santa Maria naquele 27 de janeiro de 2013, é difícil relembrar sem sentir um nó na garganta. Durante todo aquele domingo, a partir da madrugada do incêndio, o que se via era um cenário de guerra, com sirenes de ambulância soando por toda a cidade, com a população desnorteada diante de um fato tão tragicamente inesperado. Os dias foram se passando e na medida em que avançavam, o quadro apresentado apontava para a irresponsabilidade dos donos da boate e dos músicos, mas também para a negligência do poder público municipal e do estadual (Corpo de Bombeiros).

E um dos trabalhos importantes que contribuiu para desnudar a cadeia de (ir)responsabilidades que levou à tragédia foi o dos profissionais de jornalismo. De uma forma geral, todos os jornalistas da cidade se esmeraram em realizar uma cobertura responsável e detalhada da tragédia. No entanto, dois experientes repórteres gaúchos, com anos de estrada na investigação jornalística, foram fundamentais na publicação de documentos que trouxeram para a opinião pública a certeza de que as causas do incêndio não se restringiam a quem acendeu o artefato luminoso na madrugada de 27 de janeiro ou aos donos da boate.

A situação era bem mais complexa, com a casa noturna funcionando sem ter todos os documentos necessários, e com uma fiscalização, tanto da prefeitura como dos bombeiros, agindo, no mínimo, de forma negligente. Carlos Wagner, 60 anos de idade e quase 40 de profissão, um dos mais premiados repórteres do país, especializado em conflitos de terra, criminalidade em fronteiras, aportou durante meses em Santa Maria. Ele foi acompanhado de outro colega da redação de Zero Hora, com cerca de 50 anos de idade e quase 30 de profissão, Humberto Trezzi, também ele, um profissional bastante curtido em trabalhos investigativos - integra o GDI, Grupo de Jornalismo Investigativo da RBS-, vencedor de diversos prêmios jornalísticos.

Sentimento pessoal e profissional

Perguntado sobre qual o sentimento profissional e pessoal ao fazer a cobertura dos dias posteriores à tragédia de Santa Maria, Carlos Wagner responde que, para ele, o caso Kiss representou “um divisor de águas”, tendo em vista que, ao realizar o trabalho, percebeu que não entendia nada sobre questões como licenciamento e documentação de uma casa noturna e, do ponto de vista pessoal, porque se deu conta que, tinha filhos (as) que frequentavam boates, mas que nunca se apercebera do quão inseguros esses locais podiam ser.

Para Humberto Trezzi, o trabalho jornalístico que realizou sobre a tragédia de Santa Maria foi o mais impressionante de sua carreira, mesmo considerando, segundo ele mesmo frisa, que já havia estado, inclusive, realizando cobertura de guerras civis em ao menos três países diferentes.

Papel do jornalismo

Respondendo sobre a importância do jornalismo na cobertura do caso Kiss, Carlos Wagner afirma que foi fundamental, pois foram esses profissionais, com seus trabalhos, que conseguiram manter o assunto em constantes manchetes ao longo de três meses a fio. Mesmo depois que o tema arrefeceu, Wagner lembra que um outro jornalista, estabelecido aqui em Santa Maria, Luiz Roese, procurou abastecer as redações de novidade sobre o caso.

Humberto Trezzi também vê o papel do jornalismo como fundamental, pois, segundo ele,  foi essa constante investigação que mostrou a falta de responsabilidade das autoridades em relação ao funcionamento da boate, possibilitando a criação de uma consciência na sociedade para que fatos semelhantes possam ser evitados no futuro.

Responsabilidade dos agentes públicos

Os familiares de vítimas e sobreviventes da tragédia da Kiss, ao longo dos anos, a partir de 2013, sempre cobraram que, além dos empresários e músicos, que os agentes públicos apontados em inquérito policial também sentassem no banco dos réus. Contudo, afora alguns bombeiros, até hoje nenhum servidor municipal sofreu uma acusação direta, apesar de tudo que foi levantado, que aponta para a negligência da prefeitura. Esse entendimento do Ministério Público levou, em alguns momentos, a um forte embate com os familiares e a Associação dos Familiares (AVTSM).

Questionados sobre o motivo de agentes públicos não terem sido responsabilizados, Trezzi diz que “isso é Brasil”, e segue argumentando que é defensor de leis mais rápidas e duras em relação a esse tipo de crime. Já para Wagner, os grandes culpados são os dois donos da boate, pois “foram eles que fizeram todas as manobras para manter o negócio aberto. Se não tivesse acontecido a tragédia, até hoje a boate estaria funcionando”, critica.

Há algo que o jornalismo ainda possa fazer?

Na ótica de Carlos Wagner, “o maior tributo que os jornalistas devem fazer para os parentes das vítimas é continuar pressionando até que os quatro indiciados como responsáveis pela tragédia sentem no banco dos réus”. Humberto Trezzi segue na mesma linha, mas de forma objetiva: “É preciso cobrar, cobrar. Todos os anos”.

Leia a seguir a íntegra da entrevista com os dois jornalistas.


Carlos Wagner

70 anos de idade.

41 anos de profissão.

Aposentado desde 2014, mas segue atuando em um blog pessoal.

SedufsmQual foi o sentimento profissional e também pessoal ao cobrir uma tragédia da magnitude da Kiss?

Wagner – Um divisor de águas na minha vida profissional e pessoal. Na profissional porque com quase 40 anos de reportagem investigativa, no segundo dia de cobertura vi que não entendia nada sobre licenciamento de casas noturnas. Isso me fez ficar quase uma semana conversando com os burocratas da prefeitura, do Corpo de Bombeiros, com as entidades dos engenheiros e com autoridades federais. Para ter o mínimo de segurança na investigação jornalística era preciso saber o básico sobre como funcionava o licenciamento. Fiz fontes importantes que me ajudaram a esclarecer dúvidas que surgiram durante a cobertura. Na vida pessoal levei uma porrada. Por quê? Tenho quatro filhos, duas que nasceram nos anos 80, um nascido em 2000 e outra em 2006. Grosso modo, isso significa que nos últimos 40 anos sempre tive filho adolescente. Até a Kiss, a minha preocupação era com a segurança do filho na chegada e na saída da boate. Jamais me passou pela cabeça que o perigo estava lá dentro, como demonstrou o incêndio em Santa Maria.

SedufsmNa tua opinião, qual o papel que o jornalismo ocupou no episódio de reportar os fatos que levaram à tragédia da Kiss?

Wagner – O jornalismo foi fundamental para pressionar as autoridades a resolver o problema. Aliás, a liberdade de imprensa é um dos pilares da nossa civilização. O assunto ficou nas manchetes dos jornais por mais de três meses. Não só no Brasil. Mas em vários países ao redor do mundo, devido à grandeza do episódio. Quando o assunto saiu das manchetes e migrou para o “pé da página” dos jornais, um jornalista lá de Santa Maria, Luiz Roese, o Tigrinho, que se especializou na questão da Kiss, passou a ligar para as redações sempre que aparecia um fato novo. O trabalho do Tigrinho foi fundamental para manter o assunto Kiss nas páginas dos jornais. Podem anotar.

SedufsmA investigação jornalística foi importante para apontar possíveis responsáveis pela tragédia. Na avaliação do profissional de jornalismo, por que aquela tragédia ocorreu?

Wagner – O jornalismo investigativo foi fundamental porque descobriu fatos novos e com isso evitou que a cobertura ficasse refém das informações das autoridades. Ou que se resumisse apenas ao drama pessoal das famílias. A investigação jornalística lançou luzes em cantos cobertos pela escuridão no episódio. A tragédia aconteceu porque a Kiss era uma fogueira esperando alguém riscar o fósforo.

SedufsmDe que forma entender que apenas proprietários e músicos estão no banco dos réus? No final das contas, agentes públicos foram apontados e, afora alguns bombeiros, nada mais se viu de responsabilização.

Wagner – Eles ainda não sentaram no banco dos réus. Os grandes culpados são os dois donos da boate. Foram eles que fizeram todas as manobras para manter o negócio aberto. Se não tivesse acontecido a tragédia, até hoje a boate estaria funcionando. Creio que nós, jornalistas, temos parte na culpa pelo que aconteceu porque nunca paramos para olhar como esse tipo de casa funcionava. Fomos descobrir que o emaranhado das leis municipais, estaduais e federais que regulamentam o assunto é complexo e beneficia os corruptos.

Sedufsm Mesmo não tendo sido investigado, o então prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer, acabou pagando (apenas) um preço político à comunidade santa-mariense. No entanto, uma carreira que parecia terminada acabou sendo reavivada em Porto Alegre, onde se elegeu vereador em 2020 e acabou premiado com uma importante secretaria pelo prefeito, Sebastião Melo (MDB). De que forma avaliar essa situação? Falta de memória política?

Wagner – Schirmer tem um passado de luta pela democracia interessante. Sempre se mostrou um administrador público atento às coisas que aconteciam ao seu redor, quando participou do governo do Estado nos anos 80. Ao assumir como prefeito de Santa Maria, ele relaxou e deu no que deu. A carreira política dele acabou no incêndio da Kiss. Ele vai ser sempre o prefeito da boate Kiss.

SedufsmO que o jornalismo ainda pode fazer a respeito da tragédia da Kiss, pelos familiares?

Wagner – O maior tributo que os jornalistas devem fazer para os parentes das vítimas é continuar pressionando até que os quatro indiciados como responsáveis pela tragédia sentem no banco dos réus. Eu trabalhei durante três meses direto no caso Kiss e conversei muito com os parentes das vítimas. A demora da Justiça é uma ofensa para os pais das vítimas.

Humberto Trezzi, repórter especial de Zero Hora, do grupo RBS.

58 anos de idade

36 anos de profissão.

Sedufsm- Qual foi o sentimento profissional e também pessoal ao cobrir uma tragédia da magnitude da Kiss?

Trezzi- Foi a mais impressionante e longa cobertura da qual já participei, em mais de três décadas de profissão. E olha que já estive em pelo menos três países durante guerras civis. Foi intensa desde o início. Saí de madrugada de Porto Alegre e cheguei em Santa Maria quando ainda retiravam corpos da boate. Aí passei o dia inteiro na cobertura. E segui durante duas semanas. Voltei a Porto Alegre e, duas semanas depois, retornei a Santa Maria. Em dois meses, passei um em Santa Maria.

Sedufsm- Na tua opinião, qual o papel que o jornalismo ocupou no episódio de reportar os fatos que levaram à tragédia da Kiss?

Trezzi- Fundamental. Houve muita preocupação com que tragédias assim não se repitam. Aí os jornalistas investigaram, cobraram, mostraram o preço da negligência das autoridades.

Sedufsm- A investigação jornalística foi importante para apontar possíveis responsáveis pela tragédia. Na avaliação do profissional de jornalismo, por que aquela tragédia ocorreu?

Trezzi- Foi como desastre de avião. Um somatório de fatores, da negligência (em fiscalizar) até imprudência (do sujeito que disparou o foguete dentro da boate). Além da ganância (superlotação da boate).

Sedufsm- De que forma entender que apenas proprietários e músicos estão no banco dos réus? No final das contas, agentes públicos foram apontados e, afora alguns bombeiros, nada mais se viu de responsabilização.

Trezzi- Isso é Brasil. Eu sou a favor de leis mais duras e céleres. Como entender que alguém condenado a crimes comuns (não hediondos) só cumpra um sexto da pena? E como entender que autoridades em geral sejam tão pouco responsabilizadas?

Sedufsm- Mesmo não tendo sido investigado, o então prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer, acabou pagando (apenas) um preço político à comunidade santa-mariense. No entanto, uma carreira que parecia terminada acabou sendo reavivada em Porto Alegre, onde se elegeu vereador em 2020 e acabou premiado com uma importante secretaria pelo prefeito, Sebastião Melo (MDB). De que forma avaliar essa situação? Falta de memória política?

Trezzi- Não personalizo no Schirmer. Ele é responsável, mas distante. Não creio que soubesse dos problemas da boate. Alguns dos seus secretários, porém, sim. E fiscais. Ele é responsável solidário, talvez por algum tipo de omissão na fiscalização.

Sedufsm- O que o jornalismo ainda pode fazer a respeito da tragédia da Kiss, pelos familiares?

Trezzi- Cobrar, todos os anos.

 

Texto e entrevista: Fritz R. Nunes
Fotos: GZH; Blog Historias Mal Contadas e Arquivo/Sedufsm
Assessoria de imprensa da Sedufsm

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