Falar de democracia universitária não é só falar de eleições, mas também de direitos
Publicada em
23/06/21 18h56m
Atualizada em
23/06/21 23h20m
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Live da Sedufsm teve a presença de Albertinho Gallina e Tânia Maria Flores
A Sedufsm promoveu, na tarde da última terça-feira, 22, live intitulada “A luta pela democracia e a autonomia na UFSM: avanços e recuos”, com a presença do professor Albertinho Gallina, docente do departamento de Filosofia da UFSM, e da técnica-administrativa da UFSM, Tânia Maria Flores. A atividade teve mediação do vice-presidente do sindicato, Ascísio Pereira, e foi acompanhada por Rosana Roso Rocha Cezar e Nelson Rodrigues Cezar, intérpretes de libras que garantiram a acessibilidade do conteúdo.
Ambos os debatedores contabilizam anos de trabalho e de militância na UFSM. Tânia, por exemplo, hoje assistente social lotada na Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis e uma das coordenadoras gerais da Assufsm, ingressou na UFSM no ano de 1983. Falar de democracia, para ela, é muito mais que falar de eleição. É falar de diversidade, de respeito, de gestão. Nesse sentido, o debate sobre democracia já se inicia prejudicado, pondera Tânia, se observarmos a condição reservada aos técnico-administrativos dentro da universidade.
Entendidos como sujeitos que exerceriam atividades consideradas “meio” (e não “fim”), os técnicos sofrem com extinção de inúmeros cargos, terceirização de diversas atividades, obrigatoriedade do registro de trabalho via ponto eletrônico e reiteradas tentativas de assédio moral. “Sem contar que na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) aparecemos caracterizados como não docentes. Nada mais constrangedor para uma categoria que ser conhecida como a negação de outra”, comenta a dirigente da Assufsm.
Em âmbito local, algumas contradições elencadas por Tânia e que se chocariam com uma gestão democrática seriam a circulação de polícia no campus, a aprovação do Código de Conduta (2018) e do Regime de Exercícios Domiciliares Especiais (REDE/2020) sem diálogo com a comunidade universitária, e a também falta de diálogo com as entidades representativas na organização do pleito à reitoria deste ano.
“Muitos encaminhamentos da atual reitoria acabaram em mera frustração sem resultado prático nenhum, como a estatuinte, a política institucional de igualdade de gênero e as denúncias de assédio moral e sexual resolvidas através de meras remoções de setores”, critica a técnica-administrativa, que acrescenta: “Como falar em democracia quando vemos a divisão do poder tão desigual em nossa universidade? Quantas mulheres e quantos negros têm na gestão?”.
Contradições locais e autoritarismo nacional
O processo de eleição para a nova reitoria da UFSM tem início nesta quinta-feira, 24 de junho, com uma pesquisa de opinião eletrônica a ser realizada junto a docentes, técnico-administrativos em educação e estudantes. Embora, num primeiro momento, o Conselho Universitário (Consu) tenha optado por realizar a pesquisa no lugar da tradicional consulta à comunidade justamente para preservar a paridade dos votos entre os segmentos, decisão recente da Justiça de Santa Maria determinou que, mesmo na pesquisa de opinião, a proporção de 70% de peso para votos de docentes, 15% de peso para votos de técnico-administrativos em educação e 15% de peso para estudantes deve ser mantida. A pesquisa constitui a primeira parte do pleito.
Num segundo momento, a eleição ocorre nos conselhos superiores. Lá, os candidatos inscrevem-se individualmente e os conselheiros votam a lista tríplice, no dia 12 de julho, tendo o resultado da pesquisa como embasamento.
Para Tânia, embora o Consu tenha tentado, com a escolha pela pesquisa de opinião, garantir a democracia no pleito, a falta de diálogo com as entidades representativas dos três segmentos da comunidade universitária (docentes, técnicos e estudantes) foi um erro. Tais entidades, ressalta a dirigente, foram chamadas apenas num segundo momento, quando já não havia espaço para sugestão de mudanças no processo. Assim, o papel que lhes caberia seria compor uma comissão responsável pela pesquisa de opinião. “Tenho convicção de que, se as entidades tivessem a frente desse processo, teríamos mais êxito nos resultados”, analisa a dirigente sindical.
Além dessas debilidades internas, Tânia ainda destaca a postura autoritária do governo Bolsonaro, que, por diversas vezes, não nomeou o primeiro colocado da lista tríplice, e sim outros candidatos, considerados interventores, mais afinados com as políticas privatistas e antidemocráticas em curso. Para ela, a lei atual (que não encerra o processo de escolha de dirigentes dentro das universidades, relegando ao MEC o papel principal de nomear, ou não, o primeiro candidato da lista tríplice), deveria ter sido alterada durante os governos progressistas, bem como a lei que institui a proporção 70-30. “Precisamos resistir e aproveitar esse momento para repensarmos nossa maneira de construir e manter a democracia interna da nossa universidade”, conclui.
Um pouco de história
Quando Tânia ingressou na UFSM, o Brasil ainda vivia a ditadura militar e os reitores eram nomeados pelos presidentes. Após a redemocratização, a comunidade universitária passou a participar do processo de escolha de seus próprios dirigentes. Assim como todas as conquistas sociais e democráticas, essa também não caiu do céu, mas foi fruto de muita mobilização nas bases das instituições.
Embora a possibilidade de realizar consultas tenha sido conquistada, na década de 1990 vieram duas modificações que fragilizaram a democracia universitária que, à época, recém engatinhava. Uma delas passava a excetuar da disputa aos cargos de reitor e reitora os técnicos e os estudantes. A outra dizia respeito, justamente, à proporção 70-30 nos votos.
Ainda assim, as consultas paritárias eram realizadas e os conselhos universitários, no momento de formação da lista tríplice, levavam em conta esse resultado. A lista, por sua vez, era respeitada pelo MEC, que, mesmo não sendo obrigado, sempre respeitou a escolha das comunidades, nomeando o primeiro colocado. Isso até chegarmos ao governo Bolsonaro...
Direitos sociais
Albertinho Gallina, hoje docente do departamento de Filosofia da UFSM, já atuou como estudante e também como técnico-administrativo em educação na mesma universidade. Na avaliação do professor, falar em democracia apenas levando em consideração a noção mais abstrata de regime democrático (garantias individuais e escolha de representantes por meio de eleições) é insuficiente.
Falar de democracia é, na verdade, falar de um regime onde os direitos sociais são garantidos, onde o exercício de poder não sofre interferência do setor econômico, onde há liberdade de imprensa, onde o sistema jurídico atua de forma independente e onde as pessoas que participam da vida pública têm criticidade, empatia e solidariedade.
“Para mim, a constituição e a manutenção dos direitos são aquilo que poderíamos considerar como um elemento essencial da democracia”, diz o docente. Tendo em vista esses itens colocados como essenciais para um regime democrático, Gallina sugere que possivelmente ouviríamos um sonoro “não” ao nos questionarmos sobre se nossa sociedade brasileira seria, de fato, democrática.
Projeto de universidade
A universidade, como uma instituição responsável por garantir um dos direitos sociais elementares à democracia, o direito à educação, deve ser palco de discussões sobre quais projetos de educação superior estão em disputa nos diversos momentos históricos.
Na avaliação de Gallina, então, é preciso que, num pleito à reitoria, as discussões sobre o papel cumprido pela universidade permeiem todo o processo. Papel que vem sendo,destaca o professor, cada vez mais disputado por órgãos do imperialismo e setores ligados ao empresariado. Exemplo citado por ele é o documento “Conhecimento e inovação para a competitividade”, assinado pelo Banco Mundial e pela Confederação Nacional das Indústrias, e que expressa um projeto de universidade voltada ao mercado, pautada pela comercialização do conhecimento, intimamente ligada ao setor produtivo e com perspectivas de ser controlada por Organizações Sociais.
Para Gallina, “num processo de escolha de representantes na universidade, não poderíamos nos furtar de discussões sobre a natureza da universidade. O que está em jogo hoje é uma questão muito mais séria e decisiva do ponto de vista da preservação da universidade como instituição social que tem como meta o direito social à educação”.
A universidade, uma vez que compõe organicamente a sociedade brasileira, deve se atentar também à realidade que se expressa para além de seus muros. Realidade, observa Gallina, de constante retirada de direitos.
“Estamos vivendo a implementação de um projeto neoliberal, que tem como foco a retirada dos direitos sociais”, comenta o docente, lembrando as reformas recentemente aprovadas, ou que ainda estão em tramitação, e que visam a enxugar o Estado brasileiro, diminuir a protetividade ao trabalhador e mercantilizar serviços públicos. Um exemplo de retrocesso citado por ele foi a Reforma Trabalhista, que trouxe consigo o aumento da terceirização, do trabalho intermitente e da precarização do trabalho feminino.
É preciso, então, que as eleições às reitorias sejam vistas como momentos em que as possibilidades de discussão sobre a universidade e a sociedade que queremos se ampliem, produzindo unidade e sínteses entre os diversos atores sociais.
A live está disponível para ser assistida na íntegra em nosso canal do Youtube (ou aqui mesmo):
Texto e prints: Bruna Homrich
Assessoria de Imprensa da Sedufsm o Homri