“Morte aos gays”, diz grupo após interromper defesa de TCC na UFSM SVG: calendario Publicada em 23/07/20 17h52m
SVG: atualizacao Atualizada em 23/07/20 19h06m
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Trabalho de conclusão abordava os discursos de ódio contra LGBTs

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Às 11h do último dia 15 de julho, Pablo Domingues, estudante de Direito na UFSM, apresentou seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Cerca de 75 pessoas, dentre familiares e amigos, reuniram-se na sala virtual montada para a defesa do estudante, que abordou, em sua tese, os discursos de ódio e a criminalização da homotransfobia.

Por volta das 11h25, finalizada a apresentação inicial do trabalho, o primeiro professor avaliador preparava-se para expressar suas considerações. Então iniciaram os ataques.

Inicialmente, a fala do docente foi interrompida por gemidos pornográficos. Logo depois, passaram a soprar fortemente os microfones. Em seguida, duas pessoas desconhecidas ligaram as câmeras. Por fim, reproduziram áudios do presidente Jair Bolsonaro em entrevistas concedidas quando ainda era deputado federal. “O filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um coro, ele muda o comportamento dele”, dizia o então parlamentar em um dos áudios.

Domingues relutou em acreditar que se tratava de um ataque homofóbico. Primeiramente, pensou que os ruídos viessem de amigos ou familiares sem muito traquejo tecnológico. Quando a voz de Bolsonaro ressoou, contudo, veio a certeza de que sua apresentação de TCC havia sido invadida. Frente à impossibilidade de seguir com a atividade, o estudante, a orientadora, co-orientadora e os dois avaliadores criaram uma nova sala, dessa vez sem a presença de nenhuma pessoa externa, para que a avaliação do TCC pudesse ser concluída. O que mais entristeceu Domingues foi ter de excluir sua família – inclusive sua mãe - e amigos desse momento que marcava a finalização de sua graduação.

Estudante e professores desligaram-se da sala inicial por volta de 30 minutos após o início da apresentação, rumando, então, para a nova sala privada. Contudo, a primeira sala continuou sendo gravada por mais trinta minutos posteriormente à saída de Domingues, permitindo o registro de mais alguns ataques, a exemplo de quando o grupo, de cerca de quatro pessoas, comemorou: “acabamos com esse seminário gay”. A frase mais chocante, contudo, estava por vir: “morte aos gays”.

Domingues explica que, alguns dias antes da apresentação, divulgou uma pequena imagem em sua conta no Twitter informando sobre a data, o horário e o tema de sua defesa. Àqueles que desejassem assistir, orientava-se solicitar o link ao estudante. Essa imagem teve mais de 4 mil visualizações. “Pode ser que essas pessoas tenham visto a postagem e passado a monitorar meu perfil”, comenta o estudante, que, cinco minutos antes do início de sua defesa, publicizou o link pelo twitter.

Para o estudante, não se tratam de inimigos individuais cujo objetivo seria atacá-lo especificamente. O foco dos ataques seria, justamente, o tema de sua monografia.

“Eu tratei na minha pesquisa sobre o discurso de ódio lgbtfóbico – como funciona, quais as consequências dele para as pessoas lgbts. Fiz uma análise dos discursos das ministras e ministros do Supremo Tribunal Federal durante o julgamento das ações que criminalizaram a homofobia no ano passado. Submeti essa análise à teoria da criminologia crítica, tentando entender que a criminalização nem sempre é a solução. O tema chamou a atenção dessas pessoas. Na minha opinião, foi um ataque homofóbico que tem tudo a ver com o tema da minha pesquisa”, comenta Domingues.

Discurso de ódio

No intervalo de um mês, esse é o segundo ataque de que se tem notícia na UFSM. Recentemente, uma aula virtual sobre saúde da população negra, promovida por disciplina do curso de Nutrição da UFSM em Palmeira das Missões, teve de ser encerrada após um grupo impor obstáculos à continuidade da aula. A postura foi bastante semelhante à adotada pelo grupo que perturbou a defesa do estudante de Direito: após finalizados ambos os eventos, os perturbadores comemoraram.

Domingues conhece bem esse tipo de discurso, tendo o teorizado, inclusive, em sua monografia. “O discurso de ódio tem uma função bem objetiva, que é a de inferiorizar e objetificar não apenas a pessoa, mas o grupo ao qual ela pertence. Dessa forma, o discurso de ódio só é possível contra grupos que são socialmente vítimas, como mulheres, negros, lgbts, indígenas. Esse discurso vem com a função de retirar a humanidade dessas pessoas, tratando-as com preconceito e discriminação”, explica.

Orientadora de Domingues em seu TCC, a professora Rosane Leal da Silva coordena o Núcleo de Direito Informacional e o Observatório Permanente de Discursos de Ódio. Embora venham ganhando mais expressão em nossos dias, ela lembra que o preconceito e a discriminação não são fenômenos novos, especialmente quando praticados contra minorias, “assim denominadas em decorrência das violências a que historicamente foram expostas, tanto a violência velada, que não é facilmente perceptível, quanto aquela explícita e até mesmo brutal. Dentre os alvos constantes estão aqueles que sofrem os ataques em razão de sua raça, nacionalidade, orientação sexual, condição de saúde ou idade, opção religiosa, enfim, algum elemento que, aos olhos do ofensor, justificariam a incitação da violência. Denominamos esse comportamento de discursos de ódio, tema que há mais de uma década pesquisamos no Observatório Permanente de Discurso de Ódio, no Núcleo de Direito Informacional do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Maria”, explica.

Muitos vêm se perguntando o porquê de tais discursos subirem à superfície e serem, de certa forma, normalizados em nossos dias. Rosane acredita que vários fatores podem ser creditados a tal fenômeno. “Esses discursos odientos têm registrado crescimento nos últimos tempos, não somente em razão das facilidades abertas pelo uso da internet, tais como rápida difusão, sentimento de anonimato e ideia equivocada de impunidade, mas principalmente pelo fato de muitas pessoas se sentirem autorizadas e até encorajadas a realizar essas manifestações, seguindo o triste exemplo dado por alguns governantes”, comenta.  

Ela ainda lembra que a manifestação de ódio é ofensiva aos direitos humanos. “[...] viola a dignidade da pessoa humana, protegida pela Constituição Federal, além de se constituir em crime, como no caso do racismo, previsto na Lei nº 7.716/1989, lei aplicável também em caso de violência contra a comunidade LGBT+, conforme recente entendimento do Supremo Tribunal Federal”.

Protegidos pelo anonimato

Se hoje o preconceito parece ter se desavergonhado, muitos de seus agentes protegem-se atrás do anonimato. O grupo que atacou a defesa de monografia de Domingues, por exemplo, usava máscaras.

“Não acredito que a punição penal vai me trazer alguma coisa. Acredito em achar as pessoas que fizeram isso e retirá-las do anonimato. Quando eles saem dessa superfície da internet, sentem-se ameaçados. Isso demonstra muito da covardia e do golpe baixo deles, que nem a cara a tapa conseguem dar. É um grupo com viés ideológico legitimado pelo atual governo”, opina o estudante.

Domingues acredita que tais grupos agressores sintam-se validados pelos discursos de Bolsonaro. “Nada mais emblemático do que eu sofrer um ataque homofóbico, numa banca sobre violência homofóbica, e uma das formas de expressão dessa violência ter sido a reprodução de um áudio do presidente da República dizendo expressamente que ele bateria no filho se o filho fosse gay. Quanto mais ele [Bolsonaro] incentiva isso, mais as pessoas que antes já eram homofóbicas e racistas sentem-se à vontade para entrar numa chamada pública e perturbar. O fato de eles estarem no anonimato representa muito da covardia e da incapacidade que eles têm de assumir quem são”, problematiza o estudante.

Associando os dois recentes ataques ocorridos em atividades virtuais na UFSM, ele ressalva que, embora o racismo e a homofobia tenham origens distintas, os discursos de ódio - que têm saído da esfera discursiva para atingir a materialidade cotidiana – conservam o mesmo objetivo: inferiorizar, descredibilizar e levar a que as pessoas e grupos alvos dos ataques questionem suas próprias existências.

“Querem fazer com que nós, que pertencemos a esses grupos, nos sintamos inferiores e incapazes de ocupar esses lugares e de produzir pesquisa. Ou, se estamos falando sobre isso, seriam assuntos inúteis que não desenvolvem o país. Muito do discurso do governo vem nesse sentido, de que a pesquisa feita em ciências sociais não é útil, não funciona, não serve pra nada”, diz o estudante. “Não fui eu, Pablo, atingido. Todos nós, lgtbs, fomos atingidos. Os membros da minha banca também”, desabafa.

Papel da universidade

As universidades públicas têm sido alvo de desqualificações por parte dos sucessivos ministros da Educação nomeados por Bolsonaro. Para Rosane, contudo, essas instituições cumprem o papel de refletir sobre temas importantes, inclusive sobre os próprios discursos de ódio que legitimam ataques como o sofrido por seu orientando.

“As universidades em geral e as públicas, em particular, têm um importante papel na discussão desses temas transversais, que estão ligados à diversidade e ao respeito aos Direitos Humanos. Essa temática consta inclusive nas diretrizes para os Cursos Jurídicos e é nesse sentido que reafirmamos nosso trabalho no Observatório Permanente de Discursos de Ódio como espaço de investigação científica nesses temas tão sensíveis, como os discursos de ódio. Nosso papel é investigar a ocorrência dessas violações, propor reflexões críticas sobre essas práticas, sensibilizar a população para o respeito à pluralidade, essencial para a construção de uma sociedade mais justa”, conclui.

Domingues também alerta para a importância de as pessoas estarem, a todo momento, vigilantes sobre suas práticas para que essas ajudem a romper, e não a reproduzir, preconceitos.

O caso está sob investigação da Polícia Federal. 

 

Texto: Bruna Homrich

Imagem: Reprodução

Assessoria de Imprensa da Sedufsm  

 

 

 

 

 

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