A morte da garota indígena e o grito que cai no vazio SVG: calendario Publicada em
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Por que o assassinato de Daiane Kaingang não gera uma grande comoção?

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Na quarta, 4 de agosto, foi encontrado o corpo da adolescente Kaingang, Daiane Griá Sales, de 14 anos, em uma lavoura próxima a um mato, na terra indígena do Guarita, junto ao município de Redentora, região noroeste do RS. Ela estava nua, e com as partes do corpo da cintura para baixo arrancadas e dilaceradas. Mesmo diante desse quadro, na última segunda, 9, a Polícia Civil divulgou um laudo pericial em que afirma que a causa da morte é “indeterminada”.  Segundo o órgão da segurança pública, não foram encontradas lesões por armas de fogo ou arma branca, ou mesmo sinais de asfixia. Detalhe: o corpo foi encontrado no dia 4, mas a morte ocorreu entre a noite de sábado (31) e a madrugada de domingo (1º).

Uma reportagem do jornal ‘Extra Classe”, do Sinpro/RS, destaca que a reserva do Guarita (foto mais abaixo) possui 24 mil hectares, ocupando áreas dos municípios de Redentora, Tenente Portela, Erval Seco e Miraguaí, no norte do estado. A terra foi redemarcada em 1997 e abriga mais de 7 mil indígenas em 16 setores Kaingang e dois da etnia Guarani. O maior território indígena do RS é também alvo constante de violências e ameaças externas aos aldeados. Tudo isso em função da disputa por terras. Não é incomum a ocorrência de violência sexual contra crianças e adolescentes da reserva.

Aliás, a violência contra as populações indígenas não é um fato novo. Além do extermínio de milhões ao longo dos séculos de colonização portuguesa, em um período não muito distante, se recorrermos aos arquivos da história, veremos que, por exemplo, em 1980, o xavante Mário Juruna (que depois se elegeria deputado federal) compareceu ao Tribunal Russell IV, em Roterdã, na Holanda. O comparecimento se deve ao fato de que, naquele tribunal, três casos brasileiros haviam sido indicados como violadores da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio. Os casos foram:

- A violação dos indígenas aruaques e tucanos do rio Negro por missões salesianas, com a conivência do Estado;

- O esbulho das terras e as ameaças às vidas dos guaranis e caingangue de Mangueirinha (Paraná), em uma articulação entre os órgãos públicos e empresas particulares;

- A expropriação sistemática das terras do povo Nambiquara do Vale do Guaporé (MT).

Percebe-se, a partir disso, que ataques aos direitos dos (das) indígenas são fatos comuns ao longo da nossa história. Contudo, a assunção de um governo de extrema-direita no país, em janeiro de 2019, cuja característica é o desrespeito aos direitos fundamentais das minorias, o descaso com os direitos humanos, aponta para uma fase em que a violência física contra esses povos assume um caráter de normalidade. A tal ponto que o assassinato de Daiane é tratado de forma secundária pelas autoridades e a própria mídia comercial gaúcha dedica, ao horrendo fato, um espaço tímido.

O morticínio dessas populações, enquanto não houver uma política clara do Estado brasileiro de antiviolência e de respeito aos direitos fundamentais, não cessará. Na última terça, 10, uma nova tragédia anunciada. Raissa da Silva Cabreira, 11 anos, da etnia Guarani-Kaiowá, que morava na reserva de Dourados (MS), foi assassinada após sofrer um estupro coletivo. Depois de ter sido violentada sexualmente, a garotinha foi jogada, ainda viva, de um penhasco. Os possíveis responsáveis por mais essa barbárie- dois adultos e três adolescentes- foram presos nesta quarta, 11.

Colonização e barbárie

Marcos Rolim, jornalista, sociólogo e professor do Mestrado em Direitos Humanos do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter/RS), ressalta que crimes contra os povos indígenas são praticados desde a chegada dos primeiros colonizadores ao Brasil. E, ainda hoje, especialmente em áreas que abrigam reservas, tais populações são alvos de preconceito e discursos de ódio.

“Na barbaridade que vitimou a jovem Daiane, há indícios que apontam para feminicídio e abuso sexual, mas será preciso aguardar pela investigação policial para se ter certeza. Atualmente, a política do Governo Federal tem essa marca, o que autoriza e estimula a violência histórica. Confirmado o feminicídio, não me surpreenderá caso se encontre no perfil dos assassinos uma disposição racista. Para os racistas é como se indígenas, negros e pobres não tivessem existência real”, reflete o docente.

Esse tipo de análise também é destacada pela docente do departamento de Ciências da Comunicação da UFSM (Santa Maria), Liliane Brignol. Para ela, o fato de algumas mortes gerarem mais cobertura midiática e comoção social que outras expressa que a sociedade brasileira ainda enxerga os povos indígenas numa perspectiva colonialista, pressupondo que estariam fadados a sofrerem esse tipo de violência, assim como o povo negro.

Invisibilidade midiática e formas de opressão

Marco Weissheimer, jornalista do portal ‘Sul 21’, foi um dos primeiros a manifestar, na internet, seu repúdio ao silenciamento que os grandes veículos de mídia estavam impondo ao assassinato de Daiane.

Em entrevista à assessoria de imprensa da Sedufsm, ele credita a atrasada cobertura das empresas de comunicação a respeito do caso ao racismo estrutural que atravessa a linha editorial das empresas. Ele lembra que, enquanto o jornal que coordena noticiou o caso na quinta, 4 [cabe destacar que o Sul 21 se apresenta como um “jornal independente comprometido com a defesa da diversidade, dos direitos, do meio ambiente e da democracia”], a Folha de S. Paulo lançou matéria no sábado, 7, e a Zero Hora apenas no domingo, 8.

“[...] imagine como estaria o Rio Grande do Sul se o corpo de uma adolescente branca de 14 anos, de classe média, fosse encontrado com o corpo totalmente dilacerado da cintura pra baixo?”, questiona o jornalista.

Outra reflexão proposta por Weissheimer é a de que o assassinato de Daiane não se resume a um caso policial, sendo resultante “do cruzamento de várias formas de opressão que atravessam a vida dos povos indígenas no Brasil, atingindo de modo especialmente mais cruel, as mulheres, adultas, jovens e mesmo crianças”, pondera.

Ele ainda informa que, na quarta-feira, 11, chegou a notícia da morte de mais uma criança indígena, com marcas de violência sexual, em Dourados (MS). “Com o desmonte, no governo Bolsonaro, das já frágeis estruturas de proteção e apoio a essas comunidades por parte do Estado, e com o discurso de ódio patrocinado pelo atual governo, essa realidade só fica mais dramática. Essa é a cobertura toda que deve ser feita e que nós estamos procurando fazer”, critica o jornalista.

Liliane Brignol também avalia que a cobertura midiática acerca da questão indígena tem sido insuficiente e carregada de preconceitos. Como uma minoria social constantemente envolta em disputas e conflitos, os indígenas necessitam de serem olhados para além da visão limitada que a mídia lhes confere, defende a docente.

“Podemos usar a ideia da invisibilidade das pautas indígenas na mídia brasileira historicamente. Quando abordadas, é geralmente de um ponto de vista muito reduzido, essencialista e bastante estereotipado. Claro que há exceções e há algumas produções midiáticas bem complexas no modo de tratar a questão indígena, mas na pauta cotidiana, e olhando num contexto mais amplo e geral, o que a gente vê é uma abordagem que reflete o senso comum e o modo como o Estado trata a questão indígena no Brasil”, explica Liliane.

Para a professora, a mídia não só reflete, mas ajuda a reproduzir e também construir sentidos que são socialmente partilhados sobre a luta indígena no Brasil, “em geral com bastante superficialidade e muitas vezes reproduzindo uma série de estereótipos que levam à manutenção desses regimes de diferença e exclusão dos indígenas no Rio Grande do Sul e no Brasil inteiro. Também demonstra essa dificuldade da mídia em representar adequadamente a diversidade cultural, as diferenças e até as situações de conflitos por elas implicadas”. Por fim, ela lembra que a pressão dos movimentos nas redes sociais por vezes pode forçar a mídia hegemônica a dar cobertura a determinadas situações.

Repúdios

À Sedufsm, Roberto Liebgott, do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) Sul, explicou que a entidade está articulando com outras instituições para conseguir acompanhar o inquérito acerca do assassinato da jovem indígena (foto a seguir).

“A repercussão, diante de um crime tão cruel, é quase insignificante. Há necessidade de envolvimento do MPF nesse caso e que a PF ajude nas investigações. Fazem-se necessárias medidas de proteção e fiscalização do território indígena”, informou à assessoria da Sedufsm.

Em seu site, o Cimi Sul divulgou nota manifestando sua indignação frente ao assassinato de Daiane e cobrando responsabilização dos criminosos.

“A violência que se pratica contra indígenas se intensifica na medida em que se proliferam os discursos de ódio e intolerância contra os povos em âmbito nacional. Lamentavelmente os jovens, especialmente meninas, têm sido vítimas preferenciais de homens perversos, assassinos e estupradores. Exige-se justiça e medidas de proteção aos territórios e aos direitos dos povos indígenas”, indica trecho da nota.

A Juventude Indígena Sul também manifestou, em seu Instagram, “profunda tristeza e revolta”.

“Para cada jovem mulher, é muito doloroso que crimes como este ocorram, pois cada uma que se vai é um pedaço de nós. Queremos justiça!
Não vamos nos calar, estaremos aqui gritando e lutando para que essa barbárie não passe. Por Daiane e pelos jovens que sofrem violências todos os dias.
Nossos sentimentos aos familiares e ao povo kaingang.
Somos todos Daiane Griá Sales”, expressa o texto.

O sentimento de uma indígena

É muito triste, em pleno século 21 vivermos momentos como este da Daiane Griá Sales, diz Roseni (Tití) Mariano, estudante de Odontologia da UFSM, e que se dispôs a dar o seu depoimento à assessoria da Sedufsm. Da etnia Guarani, Roseni é oriunda da terra indígena do Guarita, reserva na qual morava Daiane.

Para Roseni, “vidas de meninas, mulheres indígenas, sendo interrompidas tragicamente porque disseram ‘não’ a uma sociedade machista e racista”. Perguntada sobre o impacto do assassinato na sociedade, a estudante afirma acreditar que a repercussão pequena tem como causa o fato de “ser uma indígena”. E acrescenta: “vivemos em um país governado por um presidente que em todos os aspectos ataca e viola diretamente os direitos dos povos originários, tentando nos tornar invisíveis”, critica.

“Vivemos há mais de 500 anos lutando, resistindo para existir, mesmo quando os nossos direitos são violados. Fatos como esses nos tornam mais fortes. E a nossa invisibilidade se dá pelo fato que os invasores não querem perder o poderio e tentam de todas as formas nos imobilizar, permitindo que a sociedade não se posicione diante de um fato trágico e desumano como esse”, enfatiza Roseni Mariano (foto abaixo).

O genocídio e o poema

Em um artigo publicado pelo estudante Toni Bandeira, do programa de pós-graduação em Letras da Unioeste (PR), que está disponível na internet, ele analisa a “Representação de um genocídio indígena em ‘Poema para o índio Xokleng’, de Lindolf Bell”.

No resumo do trabalho, o estudante afirma: “O poema intitulado ‘Poema para o índio Xokleng’ (abaixo), do autor catarinense Lindolf Bell, publicado na obra O código das águas (2001), traz aspectos da história do povo indígena Xokleng, os quais, podemos afirmar, são comuns a vários outros povos indígenas brasileiros. A Conquista do Brasil – tal como deve ser a referência a tal fato, e não a “Descoberta” – só foi possível graças à morte de milhares de nativos”.

Há uma estimativa de que a população das diversas etnias indígenas do país, em 1500, somava cerca de 6 milhões de indivíduos. Porém, essa população, no início do século XX, 500 anos após o “descobrimento”, estava reduzida a não mais que 100 mil pessoas.

“Se um índio xokleng

subjaz

no teu crime branco

limpo depois de lavar as mãos

Se a terra

de um índio xokleng

alimenta teu gado

que alimenta teu grito

de obediência ou morte

Se um índio xokleng

dorme sob a terra

que arrancaste debaixo de seus pés,

sob a mira de tua espingarda

dentro de teus belos olhos azuis

Se um índio xokleng

emudeceu entre castanhas, bagas e conchas

de seus colares de festa

graças a tua força, armadilha, raça:

cala a tua boca de vaidades

e lembra-te de tua raiva, ambição e crueldade

Veste a carapuça

e ensina teu filho.”

mais que a verdade camuflada

nos livros de história.”

(* Os xoclengues, xokleng, laklãnõ ou botocudos são um grupo indígena brasileiro que habita as áreas indígenas Ibirama-La Klãnõ, Postos Velhos, Rios dos Pardos e a comunidade do Quati, no estado de Santa Catarina)

 

Texto: Fritz R. Nunes e Bruna Homrich
Imagens: Divulgação
Assessoria de imprensa da Sedufsm

 

 

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