O ativismo negacionista SVG: calendario Publicada em 15/09/2021 SVG: views 2600 Visualizações

Atualmente está em curso no Brasil e no mundo uma briga política por um tipo de memória do passado. Porém, “o passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente”, como afirmava o poeta Mário Quintana, no Caderno H.  Por óbvio, a distorção de compreensão do passado influencia a relação que estabelecemos com o hoje e a forma como projetamos o futuro.

O filme Negação (2017) aborda essa problemática, mostrando que a questão do negacionismo do holocausto também está muito forte nos países ricos, envolta na problemática dos discursos de ódio e o limite da liberdade de expressão. No filme, o escritor David Irving enfrenta uma batalha na justiça contra a respeitada autora e historiadora Deborah Lipstadt, depois que ela o acusou, em uma aula na sua universidade, de negar a existência do holocausto nazista. A conclusão do processo mostrou que David Irving deturpou evidências históricas para confirmar a sua crença de negação do holocausto. Além disso, chegou ao ponto de distorcer a visão da história sobre Hitler para abonar a sua visão favorável ao antissemitismo e o racismo.

Mas o que leva um escritor produtivo promover a adulteração da história para justificar opiniões ou crenças prévias? Creio que estamos diante de duas formas de distorção psíquica da realidade a que estamos sujeitos, quando não temos uma visão cultivada, científica e crítica dos fatos, bem como de nossas próprias atitudes e crenças. Tratam-se das “percepções seletivas” e da “dissonância cognitiva”, que não são exatamente a mesma coisa, mas se completam de certa forma.

Outro dia conheci uma pessoa no supermercado e, após um breve bate-papo, perguntei se não havíamos nos conhecido antes, dada a familiaridade que surgiu na conversa. Ele me respondeu que não, mas que talvez a nossa camaradagem resultasse de termos ambos ideias conservadoras da realidade. Fiquei assustado, porque na verdade até então, naquelas breves palavras que trocamos, ainda não havíamos falado das nossas visões de mundo ou de posições políticas. Ou seja, em um simples encontro casual pode se manifestar as ideias pré-concebidas.

Percepção seletiva é o nome dado ao fenômeno psicológico no qual, diante de um fato novo, tendemos a enquadrar a sua compreensão focando elementos que confirmam as nossas crenças pessoais exclusivamente. Portanto, vamos ver, ouvir ou prestar atenção apenas naquilo que já conhecemos por simples acomodação do pensamento. Enquanto a dissonância pode resultar na tendência à confirmação de mecanismos de proteção ao ego, mesmo que para isso seja preciso a negação de evidências. Assim, quanto mais forte ou enraizada estiver a crença mais tendemos a negar aquilo que for oposto. Esses fenômenos psíquicos podem levar não só a negar a evidência dos fatos, mas contrariar a lógica, criar uma memória falsa do passado e, num estágio mais avançado, promover a perda de contato com a realidade, que é própria do surto psicótico.

Podemos entender melhor assim o que levou, no filme, o processo movido por Irving contra a historiadora estadunidense Deborah Lipstadt e a editora Penguin Books. Como também, as atitudes que vimos recentemente na vida pública no Brasil, especialmente na semana da Pátria, quando milhares de pessoas foram às ruas protestar a favor da liberdade, embora até o momento vivemos num país livre e democrático. É saudável lutar ao lado da liberdade, sempre ameaçada pelos padrões da mídia, do consumo e das ingerências do estado na vida do cidadão, por exemplo. Mas aí vem o paradoxo, manifestações estas portando faixas que pregavam o fechamento de tribunais de justiça (STF) e, outras, defendendo intervenção militar no país. Quer dizer, lutamos por liberdade para não termos mais liberdade? Ao invés de se  indispor contra o aumento nas contas de luz, da gasolina e dos alimentos, ou da inflação descontrolada, cujos preços e custos estão à beira do insuportável.

A liberdade sempre pressupõe responsabilidades, o justo equilíbrio entre causas e consequências das atitudes que tomamos. Porém, quando esse equilíbrio é rompido, talvez então já ultrapassamos os dois primeiros passos - a fase da negação do passado, e da lógica - e estamos avançando, a passos largos, para o mergulho no surto psicótico de negação da realidade. Quando chegamos a isso na vida pública, significa que não estamos mais no estágio da neurose, mas da psicose coletiva, muito comum nos sintomas de delírios e alucinações, que se manifesta no discurso desorganizado ou dissonante com a realidade que vimos nas faixas ou nos refrões que eram gritados o tempo todo. Nesses episódios, diferente do filme em que tudo se resolveu nos tribunais, talvez seja necessário o esclarecimento não só através da presença mais incisiva da intervenção judicial e do STF, mas da terapia cognitiva e quiçá medicamentosa, ao mesmo tempo.  

 

Referências:

NEGAÇÃO. Direção de Mick Jackson. Drama/história. Inglaterra: Sony Pictures, 9 mar 2017 (1h50min).

FESTINGER, Leon. Teoria da dissonância cognitiva. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1975.

 

Sobre o(a) autor(a)

SVG: autor Por Amarildo Luiz Trevisan
Professor Titular de Filosofia da Educação. Membro do departamento de Fundamentos da Educação da UFSM

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