Arquivo familiar, afeto e as armadilhas de memória e tempo
Publicada em
01/10/2025
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Quem tem o privilégio de conviver com seus pais ou outros familiares mais velhos sabe: a cada dia que estamos próximos a eles temos uma nova oportunidade de saber mais sobre as memórias da família a partir de relatos e de arquivos pessoais que reúnem documentos como fotografias, cartas, agendas e certidões. Quando muito jovens, não temos a dimensão do que significam estas lembranças. Na vida adulta, porém, quando já temos a consciência da importância dos diálogos e das trocas de afeto nas conversas descontraídas sobre a família e seus rastros, o tempo é um inimigo implacável.
O tempo corre, ele nos enreda. Quando percebemos já passou um dia, uma semana, um mês desde que pensamos em perguntar sobre aquele tio distante, sobre como era nossa avó quando mãe jovem ou como foi mesmo que nossos pais se conheceram. As urgências da vida nos tiram o foco dessas pequenas, e revigorantes, viagens no tempo dos antepassados.
O envolvimento no trabalho, nas coisas da nossa própria casa, nos problemas que nos afetam e nos cercam acabam por nos afastar de momentos de olhar para o passado e fazer as conexões com nossos pais em um simples ato de escuta. Por um momento, olhando para seus rostos entusiasmados com o relato, é como se fossemos crianças, descobrindo o mundo, ouvindo sobre coisas que não vivemos, mas têm relação com o que somos.
Não é preciso um ambiente ideal para pausar os acontecimentos ao redor de si e ouvir o que têm a contar os mais velhos. É preciso prioridade. Nas visitas a nossos familiares, nos perdemos em coisas do dia a dia sobre a compra de remédios, idas aos médicos, histórias de nossas próprias vidas, e da rotina deles, o que parece ocupar todo o nosso tempo. Quando o silêncio se faz presente é que lembramos de questionar sobre nossas curiosidades. Paramos de falar e apenas ouvimos.
A memória, é verdade, também tem as suas armadilhas. Quando as histórias começam a fluir, o vai e vem de imagens mentais e diferentes narrativas surgem. Contradições aparecem e a incerteza da lembrança mostra-se natural, afinal já trilhamos um longo caminho desde os acontecimentos. Respeitar o tempo da lembrança, as diferentes lembranças, e dar margem aos “erros históricos” na fala do outro é ter a ideia de que não há uma verdade absoluta, mas verdades aproximadas e certezas possíveis. Toda história é uma versão, uma versão que nasce da conjunção do fato e do ponto de vista. Mudando o tempo e o espaço, muda o ponto de vista.
As armadilhas da memória são desmanchadas com outras fontes e com os documentos do arquivo familiar, que deve ser preservado. Assim, precisamos de mais tempo para ouvir outras pessoas, checar nomes, datas e lugares. Não se trata de realizar uma pesquisa científica, na qual a exatidão é a norma. Estamos aqui pensando em afetos, em sensibilidade e amor. As histórias de família são mais interessantes quando temos interlocutores que amamos. O tempo, como já disse, ele é implacável, e, como diz na música do Legião, “não temos tempo a perder”.
Sobre o(a) autor(a)
Professora do departamento de Arquivologia da UFSM