A consolidação instável da democracia sempre em crise: ame ou...
                
                     Publicada em
                    29/10/2025
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        “Durante um tempo, parte da Teoria Democrática classificava os países democráticos em, a rigor, dois grupos: as democracias consolidadas (alguns países europeus e os Estados Unidos, por exemplo) e as não-consolidadas. Por decorrência, as não-consolidadas, que incluíam os países latino-americanos, estavam sujeitas a riscos de toda ordem, de vetos e tutelagem das Forças Armadas a golpes de Estado propriamente ditos. A ‘consolidação’, porém, não resistia a uma observação mais apurada. Em vários momentos, os princípios democráticos foram deixados de lado, independente dos motivos, embora a estrutura legal e institucional democrática tenha se mantido, para ser, novamente, testada.
A mobilização, há, pelo menos, quinze anos, de entendimentos políticos conservadores, em parte reacionários e à direita, antissistema e antidemocráticos, com segmentos sociais mobilizados e engajados, orbitando lideranças com perfil personalizado e populista, gerou contundentes reações ao regime democrático, no sentido da defesa, inclusive, de posicionamentos autoritários e, no limite, a instauração de regimes políticos ditatoriais. Mesmo considerando que tais movimentos sempre, em maior ou menor medida, ocorreram, sobretudo no caso brasileiro, a adesão de parte significativa do eleitorado e os respectivos êxitos eleitorais, são definidores de um contexto no qual, mais uma vez, a democracia é posta à prova. Desta vez, de maneira incisiva, com uma combinação de compreensões depreciativas da política e da democracia, extremismos à direita, entendimentos de base valorativa e moral sobre os costumes, desigualdades em geral e, de forma específica, a acusação, com bastante fundamento, de que o regime político-democrático não apresenta resultados na melhora do bem-estar econômico e social (emprego, custo de vida, renda, etc.).
A Democracia Representativa se formata, em grande parte, no século XIX (Mill, 1980; Tocqueville, 2000) e passa por momentos de expansão e retração ao longo do tempo. Uma definição descritiva e, portanto, mais abrangente, considera que um regime político para ser considerado democrático precisa ter um conjunto de características que envolvam direitos políticos amplos, eleições livres e idôneas, disputa e competição política com regras estabelecidas previamente, garantias constitucionais de liberdade, direitos e participação (Sartori, 1994; Dahl, 2005; Lijphart, 2003). Nessa argumentação, o processo democrático tem como cerne as eleições (Przeworski, 1994; O’Donnell, 1999) e a competição política pela eleição de representantes que tomarão as decisões em nome de quem detém o poder soberano, o povo.
A centralidade na competição e eleitoral e na representação política, todavia, também pode gerar uma série de questões, de forma mais incisiva em sociedades com elevados e variados graus e tipos de desigualdade (social, econômica, etc.) e assimetrias de recursos políticos, situação que tende a afetar a tomada das decisões políticas, configurando um contexto no qual segmentos da população passam a ter graus diferentes de influência nas decisões, ainda que, formalmente, haja garantias de igualdade e direitos políticos amplos. No mesmo sentido, a tomada de decisões políticas nos espaços da política institucional (Poder Executivo e Poder Legislativo, principalmente), também é confrontada pela existência de preferências e interesses variados e contrastantes no âmbito social, pluralidade e relação maioria e minorias (Dahl, 2012; Przeworski, 1994).
Levando em conta essa perspectiva, as democracias tendem a ser, de forma inerente, instáveis e não-consolidadas, na América Latina, nos Estados Unidos e em qualquer outro lugar. Ou seja, não é a democracia atual que está em crise. É elemento constitutivo das democracias a existência de crise, seja pela estrutura socioeconômica, seja pela competição política, relações de poder e correlação de forças; ou por tudo isso. O problema é quando a crise se aprofunda de tal maneira que acabe produzindo mobilização e ação antidemocrática, não encontrando sanções, punições e obstáculos. E, no caso brasileiro, as decisões do Supremo Tribunal Federal a respeito da tentativa de golpe mais recente, são um exemplo de que, no meio da instabilidade, a preservação da democracia tem relação específica com a estrutura institucional e a punição, além do nível de mobilização política.
Os regimes políticos democráticos, todavia, também precisam apresentar resultados no sentido do bem-estar da população. As decisões políticas devem ser mais abertas às demandas e reivindicações. E o eleitorado precisa de informação suficiente para construir algum tipo avaliação mais assertiva que embase sua decisão de voto. A questão é que tudo isso é incerto (Przeworski, 1994), depende do grau de envolvimento e mobilização, dos recursos, os quais são desiguais e assimétricos, das desigualdades, das crenças e dos interesses. E da competição política em si. Para usar um lugar-comum, no fim do dia, política é relação de poder e correlação de forças. Portanto, democracia é crise e, mesmo que mude pouco, pode mudar a qualquer tempo.”
(* Texto produzido a partir das discussões do Grupo de Estudos Conversando Sobre Teoria Política: Democracia em Crise ou Democracia é Crise, desenvolvido ao longo de 2025 pelo Núcleo de Pesquisa e Estudos em Ciência Política/UFSM).
Sobre o(a) autor(a)
Professor de Ciência Política - Departamento de Ciências Sociais da UFSM
 
                