Os impactos da tragédia da Kiss na universidade
Publicada em
11/03/13
Atualizada em
11/03/13 16h18m
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Tema é destaque na edição de fevereiro do Informandes

A tragédia na boate Kiss, em Santa Maria, na madrugada de 27 de janeiro, é muito recente e continua repercutindo. Durante o 32º Congresso do ANDES-SN, encerrado no último sábado, 9, no Rio de Janeiro, foi distribuída a edição de fevereiro do jornal do sindicato nacional, que trouxe como destaque de capa o tema de Santa Maria: “Boate Kiss, tragédia deixa marcas na universidade”. No total, quatro páginas com depoimentos da presidente do ANDES-SN, Marinalva Oliveira, do presidente da Sedufsm, Rondon de Castro, e de diversos professores da UFSM. A matéria foi produzida pela assessoria de imprensa da Sedufsm em parceria com a assessoria de imprensa do ANDES-SN. Acompanhe a seguir o que foi publicado no Informandes.
“O impacto da morte de 240 pessoas no incêndio trágico da Boate Kiss, em Santa Maria, teve um capítulo à parte na Universidade Federal (UFSM). A instituição teve 116 estudantes que pereceram na madrugada de 27 de janeiro, sendo que mais de 60 tinham vínculos com os cursos da área das Ciências Rurais. Em alguns cursos, como no de Agronomia, as perdas provocaram verdadeiros vazios em sala de aula.
O resultado de todo esse drama ainda não pode ser analisado em toda a sua extensão, pois as dores ainda são bastante recentes. Contudo, é inegável que houve um esforço institucional, com o apoio das três principais entidades de representação dos segmentos (Assufsm, dos técnicos; Sedufsm, dos docentes e DCE, dos estudantes) para dar apoio e buscar minimizar o impacto da tragédia. Até mesmo um Centro de Acolhimento foi organizado para prestar esse apoio, não apenas aos estudantes, mas também aos demais servidores da instituição.
Contudo, alguns questionamentos permanecem na cabeça de muitas pessoas. Será que, não apenas a UFSM, mas a universidade como um todo tem estrutura para oferecer em situações como a ocorrida em Santa Maria? Diante de um contexto de exacerbada produção, classificado como “produtivista”, em que a preocupação é apresentar resultados, ainda há espaço para posturas solidárias, humanistas? A resposta para essas dúvidas ainda é de difícil percepção. Há quem diga que a instituição, ou as pessoas que constroem a instituição, se superaram no quesito solidariedade. Contudo, há quem veja por um ângulo bem cético, de que, na realidade, a universidade não tem estrutura adequada e encontra-se desumanizada.
Para o presidente da Sedufsm e diretor do ANDES-SN, professor Rondon de Castro, ainda é cedo para aferir se a universidade realmente conseguiu cumprir seu papel diante de uma situação tão trágica como a perda de mais de uma centena de alunos, de forma tão abrupta. “O tempo mostrará até que ponto essa mentalidade ‘produtivista’ emperrou ou nos deixou amarrados à espera de soluções que caberiam a nós mesmos colocar em prática. Contudo, não há como negar que o esforço coletivo existiu, buscando minimizar ao máximo possível os efeitos de um desastre tão inesperado”.
A presidente do ANDES-SN, Marinalva Oliveira, que esteve em Santa Maria no dia 4 de fevereiro, no culto ecumênico da UFSM, avalia que a mudança no mundo trabalho tem impregnado na subjetividade das pessoas uma relação individualista, e a própria universidade como lócus desse mundo do trabalho, reforça, cada vez mais, esse individualismo.
“A tragédia de Santa Maria desvelou essa situação presente e ao mesmo tempo mostrou a necessidade de resgatar nas pessoas a solidariedade, que é inerente ao ser humano. Assisti em Santa Maria as pessoas, através do coletivo, resgatando essa solidariedade através da empatia, ou seja, todos se colocando no lugar do outro que sentia a dor pela perda”, destaca ela.
Precariedade
Na avaliação de Adriano Figueiró, do departamento de Geociências da UFSM, nem a universidade e nem os professores têm estrutura para enfrentar esse tipo de situação. Para ele, a causa está no fato de que “a universidade se desumanizou ao longo do tempo”. Segundo ele, “a universidade prima por uma relação técnico-científica apenas, como se a formação do profissional não passasse pela formação do humano. Isso se reflete na falta de estrutura para atendimento dos alunos. Antes da tragédia, a única instância que tínhamos era o Anima (centro de atendimento no Centro de Educação), mas que funcionava numa estrutura precária, com falta de profissionais e de voluntários para trabalhar”.
Figueiró acrescenta ainda que “a universidade não se preocupa em criar uma política de institucionalização desse processo de humanização, de atendimento dessas pessoas. E os professores dependem exclusivamente de sua sensibilidade pessoal para agir perante os alunos, porque a universidade, até o momento da tragédia, nunca deu uma orientação no sentido de lembrar que a relação didática também é uma relação humana. O grande desafio da universidade é justamente a reumanização. Transformar isso num espaço de formação de pessoas, e não apenas de técnicos”, destaca ele.
Morte
Para o professor Márcio Badke, do departamento de Enfermagem do Centro de Educação Superior Norte do RS (Cesnors/UFSM), em Palmeira das Missões, houve um esforço para acolher os alunos, mesmo que o preparo para essas situações não seja o ideal. “Passamos toda a semana após o acontecimento dialogando com os alunos, contudo, não estamos suficientemente preparados. Temos algumas disciplinas da área de Psicologia, mas o tema da morte é pouco trabalhado. Acredito que a universidade, o docente, tinha que estar mais preparado para essa problemática”, enfatiza Badke.
No entendimento da professora Rita Pauli, do departamento de Ciências Econômicas, a universidade se desdobrou para atender essa necessidade emergencial. Entretanto, diz ela, ficou claro também que haveria necessidade de maior planejamento em setores da instituição. A falta de psicólogos é uma das deficiências apontada pela docente. Para Rita, mesmo as medidas que foram tomadas, com improvisação e esforço coletivo, não serão suficientes para apagar as marcas. Diante disso, reflete ela, será preciso que daqui por diante sejam repensados, tanto por parte da instituição, como parte da comunidade universitária, os procedimentos diante de fatos trágicos como os que ocorreram.
Acolhimento
“Ninguém está preparado para uma tragédia. Mas, mesmo assim, nos desdobramos, tanto no gabinete do reitor como nas pró-reitorias para resolver aqueles problemas que estavam ao nosso alcance”, enfatizou a professora Marian Noal Moro, da pró-reitoria de Assuntos Estudantis da UFSM. Ela explica ainda que foi montado um centro de acolhimento na instituição onde os psicólogos e assistentes sociais da Ufsm, da Furg (Rio Grande) e da Ufrgs (Poto Alegre) ajudam.
Marian acrescenta ainda que apesar de a universidade não ter uma estrutura preparada para um incidente tão trágico, com número de vítimas imenso na instituição, houve um esforço coletivo para minimizar os danos. Ela cita a criação do Centro Integrado de Atendimento às Vítimas de Acidente (CIAVA), que desde o início, teve o apoio das entidades representativas da universidade. O Centro tem a perspectiva de se tornar permanente e fazer parte de uma ideia mais ampla, com a criação de dois outros centros similares no estado.
Para Pedro Brum Santos, professor do departamento de Letras e diretor do Centro de Artes e Letras, é inegável que “ninguém está bem preparado para isso (tragédia). Isso passa pela formação individual de cada um. Temos muitas áreas de formação, evidentemente algumas têm uma formação boa para esse tipo de situação, como educação e saúde, já pela natureza do ofício. Outras áreas mais técnicas nem tanto, pois a atividade é menos apropriada pra esse tipo de situação. Acho que não é um problema apenas da universidade, mas de uma realidade mais tecnicista e mecanicista que orienta nossa sociedade”, declara Santos.
Equívocos
Marcelo Pustilnik Vieira, professor do departamento de Fundamentos da Educação, elogia o esforço institucional da UFSM após a tragédia, mas também observa equívocos na metodologia empregada. Na avaliação dele, o olhar dos profissionais se direcionou a uma temática muito clínica, esquecendo que a “relação professor-aluno não é uma relação clinica”. Sobre o Centro de Acolhimento, Vieira entende que ele foi estruturado, mas que houve pouco suporte no sentido de orientar os professores sobre o que fazer no final do semestre.
No entendimento do professor, os profissionais da área de atendimento da saúde que estiveram presentes em Santa Maria na primeira semana após o desastre teriam sido muito claros nas orientações sobre a primeira semana de aulas: “o ideal seriam atividade coletivas, multidisciplinares. Fazer movimentos corporais, atividades em jardins, respirar. Algo que pudesse criar um espaço onde eles saíssem de dentro da sala de aula, mas permanecessem juntos na universidade.” Contudo, diz ele, “para fazer atividades fora da sala de aula, com movimentos corporais, dinâmica em grupo, tivemos que forçar e fazer a contragosto das pessoas que estão clinicando o processo dos alunos.”
Vieira acredita também que houve falhas no processo de informação. “Foi indicado que as pessoas recorram ao Centro de Acolhimento, mas há dúvidas, as pessoas não sabem se precisa pagar ou não”. A recepção aos alunos nos primeiros dias após a tragédia também não teria tido o esclarecimento necessário, segundo o educador. Marcelo Vieira frisa que a orientação tinha que ter sido clara no sentido de que o objetivo não era de que não se fizesse prova em grupo, mas sim, de que ‘não faça prova, não cobre conteúdo’.
Políticas públicas
Independente das conclusões que se pode tirar em relação ao maior ou menor preparo da universidade para enfrentar uma experiência traumática de uma magnitude nunca antes vivenciada, o fato é que muitas lições irão ficar. Para o professor José Renato Noronha, do departamento de Artes Cênicas, a tragédia, contraditoriamente, obrigou a que as pessoas deixassem de lado a ideia da “produtividade” e trouxessem se volta, para dentro da instituição, a visão do “humano”.
Segundo Noronha, soube-se de episódios em que as pessoas tenham se deparado com reações frias, dentro de um contexto mercadológico e produtivista, mas, na média geral, a comoção mobilizou as pessoas para repensar as próprias posturas, no sentido de ver que a vida é muito frágil e precisa ser mais valorizada e compreendida de uma maneira mais abrangente.
Na análise do professor, os acontecimentos na boate Kiss impactaram não apenas na UFSM, mas vai além. “Não é apenas a formação do docente que precisa ser repensada. É preciso refletir sobre a questão do produtivismo não apenas na universidade, mas na sociedade como um todo. Precisamos repensar a estrutura política e social. Precisamos pensar nas políticas públicas desse país”, finaliza Noronha."
Texto: Fritz R. Nunes com informações de Bruna Homrich e Assessoria de Imprensa do ANDES-SN
Foto: Arquivo/Sedufsm
Assessoria de Imprensa da Sedufsm
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