Debate sobre 1964 expõe as vísceras do Golpe
Publicada em
07/04/14
Atualizada em
07/04/14 18h42m
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Cultura na Sedufsm abordou o trágico evento de 50 anos atrás na última sexta, 4 de abril

É um equívoco dizer que a ditadura militar passou por um período em que teria havido o “endurecimento” do regime, com os chamados “anos de chumbo”, que compreendeu de 1969 e 1974, já no governo do general Emílio Garrastazu Médici. “O regime foi violento desde o início”, ressaltou Gilvan Veiga Dockhorn, historiador e professor da Unidade Descentralizada de Silveira Martins (Udessm/Ufsm). Ele participou da 62ª edição do Cultura na Sedufsm na sexta, 4 de abril. Junto com ele estiveram na mesa o jornalista Luiz Cláudio Cunha, o militante cultural e comunista de Porto Alegre, Hans Baumann, e o dirigente nacional da CSP-Conlutas, Luiz Carlos Prates ‘Mancha’. A coordenação do debate, que reuniu cerca de 80 pessoas no Auditório da Sedufsm, ficou a cargo do professor Rondon de Castro.
Em sua explanação, Dockhorn enfatizou, em que pesem visões contestatórias, a definição de “golpe civil-militar” ao que ocorreu em 1º de abril de 1964, quando foi derrubado o governo do então presidente trabalhista, João Goulart. Para o historiador, a manobra golpista, que teve apoio de inúmeros setores civis dentro do Brasil e também o respaldo dos Estados Unidos, representou a implementação do projeto que havia sido derrotado nas urnas anteriormente.
Na análise do professor da Udessm, a coalizão golpista em 1964 era bastante heterogênea, envolvendo diversos setores da sociedade, como a Igreja e a própria imprensa. Ao longo de mais ou menos quatro anos, período em que o regime foi se estabelecendo, os golpistas foram fazendo adequações, formatando a política governamental e neste momento, houve a necessidade, segundo a definição de Gilvan Dockhorn, de “cortar da própria carne”, o que então gerou fechamento do Congresso, cassação de parlamentares, censura prévia aos meios de comunicação.
Falácias sobre o regime
Para o historiador da Ufsm, existem muitas falácias sobre o golpe que precisam ser desmentidas. Segundo ele, uma dessas construções mitificadas é de que houve um “milagre econômico”. Dockhorn ressalta que o discurso do todo poderoso ministro da Fazenda do governo Médici, era de que se precisava fazer “crescer o bolo” para depois dividi-lo. Mas essa divisão jamais aconteceu, frisou o docente, que ainda enfatizou a herança do período: uma geração surda e muda.
Outra imagem a respeito do regime militar que é considerada por Gilvan Dockhorn um mito é a questão de que os militares eram mais honestos. Houve muita corrupção nesse período, segundo o professor, especialmente porque as instituições de fiscalização estavam amordaçadas. Havia uma centralização do poder e da burocracia administrativa, lembra o historiador.
É justamente em função desse tipo de construção imagética, definida pelo professor como ideológica, é que se deve ter um compromisso sério com a memória. Para Gilvan Dockhorn, esse é um campo ainda em disputa. Daí a importância de que todos os arquivos do período sejam abertos. Além disso, Dockhorn defende que a Lei de Anistia, aprovada em 1979, seja revista para que os torturadores possam ser punidos, tendo em vista que crimes como o de tortura, são imprescritíveis.
O CINISMO
Vindo de Brasília para participar do Cultura, o jornalista Luiz Claudio Cunha – cuja trajetória inclui veículos como Veja (com a importante reportagem sobre o sequestro dos uruguaios pela Operação Condor, em Porto Alegre, em 1978), Zero Hora e Isto É, além dos prêmios Jabuti e Vladimir Herzog -, contextualizou historicamente o golpe que deu início à ditadura no Brasil. Uma tentativa de ofensiva militar já se desenhava no ano de 1961, quando da Campanha da Legalidade de Leonel Brizola. Contudo, naquele momento, o próprio exército dividiu-se, ficando alguns militares a favor de Brizola e alguns contrários. “Os militares golpistas de 64 aprenderam, com o erro de 61, que era impossível dar um golpe sem o apoio de setores do empresariado, da mídia, da igreja, etc”, pondera Cunha.
O eixo central da intervenção do jornalista no evento desta sexta foi, entretanto, o cinismo existente no Rio Grande do Sul quando o assunto é ditadura militar ou violência do Estado. Um dos exemplos citados por ele para ilustrar esse cenário foi o episódio envolvendo o comandante militar do sul, General Carlos Bolivar Goellner, em dezembro do ano passado. Quando a cidade de São Borja preparava-se para receber os restos mortais do ex-presidente João Goulart, o Jango, um repórter do jornal Zero Hora questionou o militar se a ação representava uma retratação por parte do Exército brasileiro. A isso, conta Cunha, o comandante respondeu: “Nenhum erro histórico. A história não comete erros”.
Em um artigo escrito posteriormente ao episódio, o jornalista diz que tentou explicar a Goellner que a história comete, sim, erros, sendo a escravidão e o holocausto exemplos disso. A ideia, disse, é que possamos aprender com esses erros para que eles não mais se reproduzam. “A história é feita pelo processo contínuo de acertos e erros”, diz Cunha.
Outro exemplo gritante do cinismo militar gaúcho trazido pelo jornalista foi o caso do soldado estuprado em um quartel de Santa Maria. O episódio, divulgado pelo portal de notícias online Sul 21, foi ‘apurado’ pelas autoridades militares, que concluíram pela inexistência do ato de estupro, denominando o ocorrido como ‘sexo consensual’.
Delfim e o ditador
Também em dezembro do ano passado, Delfim Neto deu uma entrevista ao jornal gaúcho Zero Hora. Questionado sobre as torturas, ele afirmou ter perguntado ao general Médici se havia essas práticas no regime. O ditador teria respondido que não, o que seria suficiente para Neto acreditar nele, pois ‘Médici é um homem sério’. Todavia, Cunha, em meio ao auditório lotado, contou uma história que fez cair o véu de inocência plantado artificialmente pelo ex-ministro da Fazenda.
Em meados de 1969, relembrou o debatedor, Delfim Neto almoçou com banqueiros e empresários representantes da FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) com a finalidade de pedir contribuições financeiras para que as Forças Armadas construíssem um aparato repressivo – Operação Bandeirantes, gérmen do DOI-CODI. Na ocasião foram recolhidos um milhão e setecentos mil dólares dos banqueiros e empresários. “Na Zero Hora, entretanto, Delfim declara que ele não sabia de tortura. Hoje, é um admirador confesso de Dilma Rousseff, torturada no DOI-CODI que ele ajudou a construir”, critica Cunha.
Talvez uma crise existencial seja o motivo de nossos militares não chamarem os 21 anos de censura e repressão pelo real nome: ditadura. É o que pensa o jornalista gaúcho, quando traz alguns dados referentes àquele período: cerca de 400 mortos e 144 desaparecidos.
Para Cunha, nosso país ainda vive problemas graves. “A primeira tarefa que temos a partir desse meio século é começar a revelar quem são as pessoas que clamam pela verdade e quais ainda chafurdam no cinismo”, pondera o jornalista, que acredita existir uma grande contradição entre os regimes militares e o ofício do jornalismo: “todas as ditaduras são cínicas, e um jornalista que preza por sua profissão não pode ser cínico”, conclui.
‘GOLPE DE CLASSE’
O membro da secretaria executiva nacional da CPS-Conlutas, Luiz Carlos Prates ‘Mancha’, trouxe elementos concretos do quão nocivo o regime militar foi para os trabalhadores do país. Até 1966, por exemplo, os trabalhadores da indústria privada tinham estabilidade no emprego, de forma que, ficando um certo tempo na empresa, não poderia ser demitidos. Após o golpe, uma medida dos militares foi terminar com essa garantia, instituindo o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), vigente até hoje, em que, ao contrário da instabilidade de outrora, as empresas podem mandar o funcionário embora a qualquer momento, tendo de fazer apenas um depósito mensal correspondente a 8% do salário.
O arrocho salarial promovido pelo então ministro Delfim Neto foi um dos maiores já registrados em toda história nacional. “Então o golpe teve esse objetivo de modernizar as relações capitalistas para aumentar a exploração sobre os trabalhadores. Outro dado é que durante esse período o Brasil se transformou em campeão mundial em acidentes do trabalho, porque a sede de lucro, a falta de organização dos trabalhadores, a proibição dos sindicatos e as grandes obras levaram à morte de muitos trabalhadores”, aponta Mancha. Assim, além das perseguições e da imposição do silêncio, o sindicalista aponta que o regime atacou os trabalhadores com políticas econômicas que visavam, a qualquer custo, retirar direitos conquistados. E foi por isso que a ditadura teve o apoio, desde seus primeiros passos, do empresariado.
Mas, se a repressão e a precarização da vida eram táticas conhecidas do regime, a resistência marcou a atuação da classe trabalhadora. Mancha cita algumas greves históricas que surgiram como as primeiras movimentações de enfrentamento ao regime: na Cobrasma, em Osasco, invadida e reprimida pelo Exército; e na Mannesmann, em Minas Gerais. Após sufocadas pelas botas dos militares, houve mais um período de dispersão do movimento operário. Contudo, nas fábricas, o trabalho de politização seguia sendo feito. Nisso entra o papel das empresas na vigilância e entrega dos trabalhadores que se organizavam. Alguns documentos exibidos pelo sindicalista mostram a estreita relação existente entre as empresas e os militares. Um desses arquivos trata de reunião realizada pelo Centro Comunitário de Segurança do Vale do Paraíba, órgão que reunia representantes da segurança e dos RH’s das empresas, do Exército, Marinha, Aeronáutica, Polícia Federal e Polícia Militar. Nessas reuniões se discutiam e repassavam o que estava acontecendo nas fábricas, com a relação de nomes e locais onde haveria focos de organização operária.
Essa articulação entre empresas e governo fazia com que muitos trabalhadores demitidos tivessem extrema dificuldade em arranjar novo emprego, visto que, por mais eficientes que fossem, seus nomes já constavam nas fichas patronais como ‘subversivo’. “Não pode, dentro das empresas, ocorrerem torturas, prisões, delações ou reuniões para conspirar contra o movimento grevista. E isso aconteceu. A impunidade que existe nas empresas faz com que até hoje tenha, por exemplo, instrumentos de vigilância nos locais de trabalho, todos oriundos do regime militar. Hoje dentro das empresas ninguém pode se declarar militante de uma organização de esquerda porque vai ser demitido. É a mesma coisa do regime militar, porque não houve nenhum tipo de punição e as empresas não têm nenhum tipo de responsabilização”, pondera Mancha.
A mesma falta de responsabilização, diz Mancha, é percebida na esfera do Estado. Criticando a fala recente da presidente Dilma Rousseff, que, colocando-se contrária à revisão da Lei da Anistia, disse que tal lei foi fruto de um acordo de unidade nacional, o sindicalista diz que a lei foi aprovada num Congresso Nacional onde existiam vários deputados e senadores biônicos – não eleitos, e sim indicados pelo regime militar – e um cerco do Exército ao redor do Congresso. “O Brasil é o único país onde não tem um torturador preso. E essa impunidade faz com que até hoje a tortura seja uma prática comum na delegacia, por isso vemos sumir Amarildo”, opina Mancha.
Mobilizações e o fim da ditadura
Ao contrário do que alguns militares e setores da sociedade insistem em dizer, o fim da ditadura militar foi um processo gradativamente construído pela classe trabalhadora e demais setores sociais da sociedade brasileira. “Foi imposta uma correlação de forças distinta a partir das lutas e das movimentações de massa que houveram. A entrada em cena da classe operária – e de amplos setores da população- é que virou o jogo”, explica.
Sobre as perspectivas para agora, o sindicalista sugere: “Precisamos colocar o bloco na rua para exigir punição a torturadores, punição a empresas, memória, reparação e também para exigir que se acabe com a onda de criminalização dos movimentos sociais, para remover todos os entulhos da ditadura militar, inclusive a nova lei da Dilma, que permite que haja infiltração da polícia nos movimentos sociais e que o Exército intervenha sobre os movimentos de protesto contra os rumos que a Copa está tomando”, conclui.
RESISTÊNCIA CULTURAL
Mas a resistência ao golpe militar de 1964 não se deu apenas na política partidária ou mesmo através da luta armada. Resistir também passa pela disputa de corações e mentes, através da cultura. E, em Porto Alegre, quem cumpriu papel importante nesse processo foi o Clube de Cultura, fundado em 30 de maio de 1950, por imigrantes judeus, muitos deles com históricos de perseguição em países europeus. Após o golpe, em 1964, o Clube exerceu com grande relevância o papel de fomentador e agitador cultural, conforme relatou Hans Baumann. Além de ter sido um dos fundadores do Clube de Cultura, Baumann também milita nos quadros do Partido Comunista (PCB) desde 1955.
Em sua participação no debate sobre os 50 anos do Golpe, na Sedufsm, Baumann lembrou que os primeiros tempos após o golpe, a situação ficou bem difícil. O medo de represálias por parte dos militares era tanto que as pessoas evitavam passar até mesmo na calçada do mesmo lado da sede do Clube. De quase 400 sócios, em pouco tempo a direção viu esse número cair para apenas quatro. Para evitar perseguições, a diretoria da época fez alterações nas atas das reuniões. E segundo conta Baumann, no momento em que os agentes do serviço Nacional de Informações (SNI) chegaram e pediram as atas, ficaram surpresos e teriam exclamado: “Disseram que isso aqui era um antro de comunistas, mas nessas atas não tem nada disso”.
No entendimento desse militante cultural de 86 anos, o Clube cumpriu uma função diferenciada em relação, por exemplo, à luta dos guerrilheiros, mas nem por isso menos importante. Segundo Baumann, apesar da censura, até um grupo de teatro próprio foi criado, que fazia encenações apresentando enredos que mostravam rebeliões contra o Império Romano, mas que metaforicamente buscavam mostrar a luta contra o autoritarismo.
Escritores de grande envergadura como Graciliano Ramos, Jorge Amado e Aparício Torelly (Barão de Itararé) passaram pelo Clube. O poeta Vinicius de Morais fez uma palestra que lotou as dependências da entidade. Oficinas diversas, como de cinema, tiveram alunos que mais tarde seriam referências na sétima arte, como são os casos de Jorge Furtado, Giba Assis Brasil e Carlos Gerbase.
Em sua explanação final, Hans Baumann sublinhou a tristeza com os 21 anos de ditadura em que o país foi mergulhado a partir de 1º de abril de 1964 e posicionou-se, assim como os demais, favorável à revisão da Lei de Anistia como forma de responsabilizar aqueles que cometeram crimes contra a humanidade.
Textos: Fritz R. Nunes e Bruna Homrich
Fotos: Fritz Nunes
Assessoria de imprensa da Sedufsm
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