O projeto econômico brasileiro e o caminho para a “uberização” da sociedade
Publicada em
20/08/21
Atualizada em
20/08/21 20h32m
862 Visualizações
Docentes da UFSM avaliam medidas de Bolsonaro que sacrificam trabalhadores (as) e beneficiam rentistas

Na terça, 10 de agosto, em meio à votação da MP 1045, que renovava o programa emergencial de corte de jornada e salário de trabalhadores (as) da iniciativa privada, criado para minimizar os efeitos da pandemia de Covid-19, a Câmara dos Deputados promoveu o que foi chamado de “minirreforma trabalhista”. Foi chamada assim por criar novas modalidades de contratações e mudar normas da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).
Dentre as medidas aprovadas, e que ainda passarão pelo crivo do Senado, a projeção de um Regime Especial de Trabalho Incentivado, Qualificação e Inclusão Produtiva (Requip), que cria a modalidade de trabalho sem carteira assinada; um programa que permite a contratação sem vínculo trabalhista, voltado a jovens de 18 a 29 anos e pessoas acima de 50 anos, em atividades de “interesse público” dos município; e, cria a Primeira Oportunidade e Reinserção no Emprego (Priore), destinado a jovens de 18 a 29 anos e trabalhadores acima de 55 anos (e desempregados há mais de 12 meses), que promete bônus e um FGTS menor.
Essa “minirreforma” surge na esteira de várias outras mudanças na legislação que afetaram duramente trabalhadores (as), seja do setor privado como também do público. Em 2017, ainda no governo de Michel Temer, a reforma trabalhista. Dois anos atrás, já no governo Bolsonaro, a tão decantada reforma previdenciária. Em 2020, a PEC 32 (reforma administrativa), ainda tramitando na Câmara, e que poderá gerar um desmonte dos serviços públicos.
Convidamos três docentes para responder algumas questões sobre o avanço governamental na supressão de direitos da classe trabalhadora. Os três fazem parte do departamento de Economia e Relações Internacionais da UFSM: professora Ednalva Felix Neves; professor José Maria Pereira (aposentado, mas que segue atuante com artigos em jornal e em seu blog); professor Daniel Arruda Coronel.
Por que tantos projetos que retiram direitos?
Na avaliação do professor José Maria Pereira (foto abaixo), o que tem ocorrido é o aprofundamento do que se convencionou chamar de “perda da centralidade do trabalho”, que se configura, explica ele, pela diminuição dos ganhos da classe trabalhadora em comparação com o aumento dos ganhos do capital. “Menos dependente da força de trabalho, fruto do processo tecnológico ora em curso, o capital aproveita para expandir os lucros”, frisa.
Daniel Coronel, que também integra o Observatório Socioeconômico da Covid-19, comenta que “a lógica destas reformas, de acordo com o governo, é aumentar a competitividade e tornar o país atrativo aos investimentos, fazendo com que cresça a confiança dos investidores”.
Ednalva Neves entende que “a minirreforma trabalhista, fruto da MP 1045/21, marca o aprofundamento da precarização do trabalho e o avanço sobre os direitos trabalhistas dos trabalhadores brasileiros, numa investida que já vem ocorrendo a alguns anos no Brasil”.
Para a economista, a redução da jornada de trabalho e do salário, e a suspensão temporária do contrato de trabalho, indicam a “ruptura da relação entre trabalhadores e empregadores, num movimento que joga à própria sorte, os trabalhadores, nos momentos de crise”. E completa: “mesmo que pareça que estão amparados pelo Benefício Emergencial, os trabalhadores estão, involuntariamente, trocando seus direitos por uma ajuda do governo”.
Impacto direto para trabalhadores (as) e para a sociedade
Na avaliação da professora de Economia, no que se refere aos impactos dessas medidas, é possível dividir em impactos para o trabalhador e impactos sociais. Para os trabalhadores, diz Ednalva, trata-se da perda à segurança que o trabalho proporciona e, consequentemente, da garantia do seu salário mensal que, para além de assegurar o acesso aos bens essenciais à sobrevivência, assegura o direito a planejar a vida, adquirir os bens que exigem um maior planejamento e tempo para pagar. “Estando refém desta medida, o/a trabalhador/a terá dificuldade para realizar qualquer planejamento para adquirir bens de consumo duráveis, imóveis, viagens, etc. Consequentemente, estas perdas imediatas comprometem, também, o futuro dos/as trabalhadores”, sublinha ela.
José Maria Pereira destaca que o impacto para trabalhadores (as) dessas reformas é como uma “avalanche”, ou seja, em pouco tempo, a perda dos direitos “duramente conquistados pelas gerações passadas”. O economista ainda faz uma autointerrogação: “fico me perguntando quanto tempo ainda levará para a classe trabalhadora recuperar a sua capacidade de organização para dar um basta a essa situação”.
Os efeitos para a sociedade como um todo, na ótica do professor, é de que a perda de direitos, como a falta de carteira assinada, levará a uma “uberização” familiar, com o prolongamento da jornada de trabalho, que levará à perda da saúde e à falta de tempo para cuidar da vida afetiva e educacional dos filhos.
Daniel Coronel afirma que se observa, mais uma vez, a perda de direitos por parte de trabalhadores (as). E, pior, em um momento de forte contração econômica, aumento do desemprego, do déficit público e de inflação no setor alimentício. Sobre o impacto desses projetos para a sociedade como um todo, ele destaca a “precarização no mundo do trabalho” e também o “baixo crescimento econômico”.
Reforma no setor público
É possível traçar um paralelo entre as reformas que tiram direitos de trabalhadores (as) do setor privado e as propostas (como a PEC 32) para o setor público?
No entendimento de José Maria Pereira é, sim, possível estabelecer relações, porque o “enxugamento” do setor público, seja pela venda de ativos ou pela redução de pessoal, “nada mais é do que uma tentativa de reduzir o déficit público para pagar o serviço da dívida (juros) aos capitalistas rentistas”.
Para Ednalva Neves (foto abaixo), é inevitável realizar um paralelo entre as reformas do setor público e as do setor privado, pois ambas promovem ataques aos direitos dos trabalhadores. “A PEC 32 ataca os direitos dos trabalhadores do setor público, um grupo que tem melhor estruturados seus direitos”, analisa a professora.
Daniel Coronel visualiza um grande equívoco no projeto de reforma administrativa. “A lógica da PEC-32 está totalmente equivocada, pois ela não qualifica e aperfeiçoa o serviço público, mas sim, retira direitos fundamentais para a execução desse serviço com qualidade, eficiência e eficácia, independentemente de posições políticas”.
Perda de direitos e competição
Quando os governos falam sobre as reformas, com o apoio da mídia comercial, o argumento é o velho de sempre: reduzir direitos para tornar a economia mais competitiva, já que as empresas passariam a ter “menos gastos”. O que pensar desse mantra neoliberal e quais alternativas em relação à exclusão de direitos?
Para o professor José Maria Pereira, as reformas nada têm a ver com aumento da competição. “Ao contrário, objetivam reduzir a concorrência e concentrar o capital”, diz o economista.
“O argumento da competitividade, agora, travestido, também, em aumento ou manutenção do emprego, tem sido a arma do neoliberalismo para a retirada de direitos dos trabalhadores”, diz Ednalva Neves. Para ela, esse argumento já provou ser ineficaz porque as perdas dos trabalhadores não são repassadas aos preços finais das mercadorias. “E nítido que não há reduções de preços quando estas medidas são praticadas e sim, para os lucros das empresas, o que acirra ainda mais a concentração de renda no país que tem uma das mais altas (taxas de concentração) do mundo”, assevera a economista.
No entendimento do professor Daniel Coronel (foto abaixo), a economia brasileira até precisa de algumas reformas, mas são de outro patamar. Segundo ele, o Brasil precisa de três grandes reformas: “uma reforma tributária, com impostos progressivos, que desonerem a produção e taxação das grandes fortunas; uma reforma política visando dar um novo patamar nas relações políticas, diminuir o clientelismo, o populismo, o fisiologismo e o patrimonialismo; e, por fim, uma reforma do Estado para a cidadania, para aperfeiçoar e qualificar o serviço público, não para tirar direitos e onerar o servidor público”.
Alternativas à economia
Diante da conjuntura atual, com os problemas que estão colocados, quais as saídas para a economia do país?
Ednalva Neves lembra que “existem outras ações que fomentam o crescimento econômico de um país” que não necessariamente reformas que cerceiem e retirem direitos. “Uma delas exige a consulta às ideias do velho (John Maynard) Keynes, odiado pelos neoliberais, que já havia sinalizado, no início do século XX, para a importância da demanda para garantir o crescimento econômico”.
Explica a professora de Economia que “o consumo é um dos componentes da demanda agregada e, por sua vez, é sabido que a população das menores faixas de renda costuma transformar parcela maior de suas rendas em consumo”. Em economês, diz ela: “a propensão marginal a consumir é maior entre os mais pobres, que costumam transformar, mais facilmente, suas rendas em consumo, garantindo o crescimento da demanda agregada. Ao garantir o consumo, o governo está, inevitavelmente, garantindo o crescimento econômico”.
Para Daniel Coronel, “a economia brasileira passa por um momento extremamente delicado, visto que se observa aumento do desemprego, inflação, aumento das disparidades econômicas e sociais, déficit nas contas públicas, ou seja, uma situação de quase estagnação macroeconômica”. Por isso, frisa ele, é fundamental “a retomada dos investimentos”. E, para isso, ressalta o economista, é imprescindível “a flexibilização da lei do teto dos gastos”.
Acrescenta o professor de Economia que “o país precisa de um amplo projeto de reindustrialização nacional, porque a indústria de transformação, que chegou a perfazer 30% do PIB, na década de 1980, apresenta hoje uma participação de 11%, e as perspectivas para os próximos decênios não são nada favoráveis”.
Na ótica do professor José Maria Pereira, a alternativa principal está na “contramão” da atual política econômica. Ao invés de cortar, aumentar os gastos público, diz eles. “Foi assim que o capitalismo sobreviveu a todas as crises anteriores e, agora, nada indica que será diferente. Tudo o mais permanecendo constante, a recuperação econômica, sem corte de direitos, deverá ser um debate a ser travado no processo eleitoral do ano que vem. Até lá, não se antevê nenhuma ‘luz no fim do túnel’”, conclui.
(Acompanhe abaixo, em anexo, a íntegra das respostas dos entrevistados)
Texto e entrevista: Fritz R. Nunes
Foto: Sindicato Bancários e arquivo pessoal
Assessoria de imprensa da Sedufsm
Galeria de fotos na notícia

Documentos
- Íntegra da entrevista do professor Daniel Coronel
- Íntegra da entrevista da professora Ednalva Neves
- Íntegra da entrevista do professor José Maria Pereira