Os desafios do combate à violência de gênero na UFSM
Publicada em
09/05/25
Atualizada em
09/05/25 20h29m
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Casa Verônica relata avanços na Política de Igualdade de Gênero, aprovada em 2021, mas dificuldades persistem

Em 2024, 72 mulheres foram vítimas de feminicídio no Rio Grande do Sul. Esse foi o mesmo número de mulheres atendidas, também no ano passado, pela equipe da Casa Verônica, Espaço Multiprofissional inaugurado em 10 de agosto de 2023, na UFSM, para acolher pessoas em situação de violência de gênero. Há dez anos o Brasil admite que nascer mulher significa comprar mais bilhetes na loteria da morte. Há apenas dez anos, com a aprovação da Lei do Feminicídio (nº 13.104), o gênero passou a ser entendido como o elemento definidor de uma série de homicídios. De lá para cá, a situação não parece ter mudado tão significativamente. De janeiro a outubro de 2024, por exemplo, 1.128 mortes por feminicídio foram registradas no país.
“A lei que tipificou o feminicídio veio retirar o machismo institucional destes crimes, que antes eram considerados “passionais”. No entanto, pelo que temos visto no Rio Grande do Sul, com mortes de crianças para atingirem suas mães, teremos de rever o escopo desses crimes”, afirma Neila Baldi, diretora da Sedufsm e integrante do Grupo de Trabalho de Políticas de Classe para as Questões Étnico-raciais, de Gênero e Diversidade Sexual (GTPCEGDS). “Há que considerar que a lei é para punir o agressor mas, antes de mais nada, é preciso evitar a agressão e, neste sentido, temos um trabalho longo de formação cidadã, de uma educação antimachista. Eu diria mais: feminista”.
Junto com as iniciativas nacionais de tipificar o feminicídio como crime, endurecer a pena para quem o comete (Lei N° 14.994/24) e promover maior igualdade entre os gêneros, as instituições federais de ensino superior também são convocadas a formular suas ações. Na UFSM, desde 2021, existe o Comitê de Igualdade de Gênero (CIG), instituído pela resolução nº 064/2021, a mesma responsável por criar a Política de Igualdade de Gênero da instituição e a Casa Verônica.
Sediada no prédio da Biblioteca Central da UFSM, a Casa Verônica funciona das 8h30 às 11h30, e das 14h às 17h, contando com uma equipe que inclui profissionais da psicologia, assistência social, assistência jurídica e comunicação e eventos. Naquele espaço são recebidos, mediante agendamento via site, relatos e denúncias das mais diversas violências ocorridas em solo institucional e motivadas por questões de gênero.
“As violências são múltiplas, é um fenômeno bastante complexo. Recebemos uma grande demanda de situações envolvendo violações da Lei Maria da Penha, casos em que há violência nos relacionamentos são bastante corriqueiros. Desde questões de abuso psicológico até violência física e sexual. Dentro do ambiente acadêmico recebemos queixas de assédio e importunação sexual em diferentes níveis de hierarquia. Além disso, atendemos também situações de violência envolvendo população trans e seus familiares ou envolvendo membros da comunidade acadêmica”, respondeu a equipe da Casa Verônica, em atenção ao email da Comunicação da Sedufsm.
Nas respostas, a equipe ressalva que toda agressão física gera sentimentos de impotência e desvalor nas vítimas, afetando a percepção subjetiva que elas têm de si mesmas. Além disso, violências psicológicas e verbais como desqualificação da mulher, xingamentos, humilhações, ciúmes excessivos, atos de controle e intimidação também não devem ser tolerados.
Números da violência
Como mencionado no início desta reportagem, em 2024 a Casa Verônica atendeu 72 mulheres em situação de violência de gênero. A maioria das denunciantes foram estudantes e mulheres cis*, embora também tenham sido atendidas mulheres trans**. Dentre os reclames, os principais estiveram relacionados a assédio institucional e assédio sexual entre estudantes.
Os dados representaram um aumento com relação ao ano anterior, 2023, quando 44 mulheres, em sua maioria estudantes e cis, procuraram a Casa, alegando, principalmente, situações de abuso sexual, seja tentativas ou consumadas.
Entre os meses de março e abril de 2025, foram identificados sete casos de violência de gênero, não sendo o agressor necessariamente vinculado à universidade. As principais demandas observadas este ano, até então, são relacionadas à identidade de gênero.
“Nos anos de 2023 e 2024 ocorreram grupos para mulheres cis e trans e também grupos de questões relacionadas à maternidade, mesmo não sendo grupos específicos sobre violência de gênero, o assunto acaba sendo um tema transversal nas atividades. De forma que o número de mulheres atendidas em 2023 e 2024 considera atendimentos individuais e em grupos”, respondeu a equipe da Casa Verônica.
Sobre o acolhimento – Quando a equipe recebe a solicitação de atendimento (preenchida no formulário online disponível no site), entra em contato para marcar o acolhimento. Atualmente não há fila de espera, de forma que os atendimentos costumam ocorrer na mesma semana em que solicitado. Após realizarem a escuta sensível da vítima, os profissionais identificam as demandas, orientam a pessoa e, quando necessário, encaminham a situação para a rede de proteção e enfrentamento à violência contra mulheres. Questionada sobre se já registraram denúncias de violência de gênero contra docentes mulheres da UFSM, a equipe respondeu afirmativamente.
“A Universidade tem feito campanha contra o assédio. Mas a quem recorro: à Casa Verônica ou à Ouvidoria? Por isso, colocamos na plataforma da atual gestão [da Sedufsm] criar mecanismos de acompanhamento de denúncias de docentes. No V Seminário Integrado do GTPCEGDS, realizado no final de abril em São Paulo, foram apontadas duas soluções interessantes: uma Ouvidoria Feminina, dentro da Universidade, e a criação de um canal de denúncia dentro das seções sindicais, em que nós mulheres diretoras ouvimos outras mulheres”, diz Neila.
O papel da Ouvidoria
Em conversa telefônica com o Ouvidor-Substituto e Respondente do Serviço de Informação ao Cidadão, Marcelo Tascheto da Silva, foi possível entender um pouco como funciona o trabalho da Ouvidoria da UFSM. Isso é importante pois, antes ou ao invés de irem à Casa Verônica, algumas pessoas podem buscar primeiramente este serviço.
Desde 2019, todas as denúncias devem ser registradas na Plataforma Integrada de Ouvidoria e Acesso à Informação (Fala.BR). Isso quer dizer que, mesmo a pessoa procurando a sala 109 do prédio da Reitoria, onde fica localizada a Ouvidoria, e realizando sua queixa presencialmente, será necessário registrá-la no portal eletrônico. Caso não tenha uma conta no site gov.br, há a opção de que sua denúncia seja registrada por outra pessoa.
“Atualmente recebemos as denúncias de violência de gênero via online e encaminhamos para a Casa Verônica quando a vítima necessita de um acolhimento. Mas estamos só aguardando o OK do gabinete para que tenhamos aqui dentro da Ouvidoria um acolhimento para vítimas de violência de gênero”, disse Tascheto. A ideia é que haja uma servidora na sala da Ouvidoria só para realizar esse acolhimento.
O Ouvidor-Substituto acredita que a maioria das pessoas ainda não entende bem qual o papel da Ouvidoria e até onde o órgão pode ir.
“Somos a porta de entrada para fazer a denúncia e o encaminhamento. Mas o Processo Administrativo Disciplinar (PAD) já não é com a Ouvidoria, é com a Corregedoria. Denúncias de assédio moral e sexual geralmente são encaminhadas para o gabinete do reitor, depois vão para a Corregedoria, para ver se tem elementos suficientes para abrir o processo. Temos 30 dias para responder a demanda. Nossa resposta pode ser: “Esse caso foi aberto, é o PAD número tal. O nosso trabalho de Ouvidoria contigo encerra por aqui. A partir daí, vai começar o PAD, que é com a Corregedoria””.
Neila Baldi, contudo, relata que ano passado recebeu reclamações de diversas professoras que foram à Ouvidoria e não tiveram suas denúncias encaminhadas.“A impotência não vem só na violência física. Quando a gente denuncia qualquer violência e a instituição não faz nada, nos sentimos impotentes. Eu mesma estive pessoalmente lá e fiquei com a sensação de que não há o entendimento do que é uma violência de gênero. Quando eu, como professora, sou assediada moralmente por um colega pela minha condição de mulher, isso é violência de gênero e se a Ouvidoria não entende assim, não encaminha para a Casa Verônica”, afirma.
Como está a implantação da Política de Gênero?
Em um terreno onde a disparidade de gênero ainda é observada e o machismo levanta obstáculos à ascensão profissional, acadêmica e científica de mulheres, é mais fácil que se propaguem situações violentas.
Para Neila Baldi, é preciso discutir o quanto as ações previstas na Política de Gênero vêm ganhando materialidade na UFSM e abrindo efetivo espaço para mudanças.
“Do ponto de vista acadêmico, a inexistência de paridade de gênero em cargos de chefia já dá espaço para as violências. É muito difícil ser mulher e estar em cargo de poder na UFSM. Tanto que são poucas as diretoras de centro. Mas a nossa política de gênero, instituída em 2021, fala em paridade. Por que isso ainda não foi feito? Está mais do que na hora de pensarmos nestas questões e agirmos. Além disso, a violência se combate com educação. E, para isso, é preciso uma Universidade que debata feminismo abertamente, que se coloque uma forma de percepção outra de mundo”, reflete Neila.
Outro questionamento levantado pela diretora sindical diz respeito à inclusão de temas referentes a questões de gênero nas licenciaturas, previsão que também consta na política de gênero da instituição.
“O que a UFSM fez? Criou uma disciplina transversal para atender a legislação e não criou, desde 2019, formas de efetivar a contratação de profissionais qualificados para lecionar nestas disciplinas – todo semestre faz a seleção de quem quer e quem pode. Por que não temos concursos específicos? Por que se resolveu pelo “jeitinho brasileiro”? Por que esta questão é menos importante dentro da instituição? Penso que a questão de gênero é uma discussão que deveria estar inclusive em todas as graduações, do mesmo modo que se discute ética profissional”, problematiza Neila.
Em resposta à Assessoria de Imprensa da Sedufsm, a equipe da Casa Verônica exemplificou iniciativas previstas nos Eixos I (Educação para a Promoção da Igualdade de gênero) e II (Enfrentamento e Responsabilização em Casos de Violência) da Política de Gênero que já estão em andamento na instituição.
A promoção de capacitações sobre assédio e escuta protegida no ambiente universitário para profissionais que trabalham com o acolhimento a estudantes, servidores e servidoras é citado como exemplo. De forma semelhante, capacitações voltadas especificamente às e aos estudantes, para que saibam identificar violências e formas de pedir ajuda também foram oferecidas.
“Com isso percebemos que a CV [Casa Verônica] vem se consolidando como um serviço de referência na UFSM para estas demandas, sendo procurada tanto por pessoas que sofrem violência, quanto por setores da instituição em busca de orientação sobre como lidar com tais situações”, escreveu a equipe.
Outros exemplos dados foram o desenvolvimento da campanha comunicacional “Medusas UFSM”, que aborda o assédio no contexto universitário e discute a importância do consentimento; a campanha “Eu decidi me reconhecer”, focada no respeito ao nome social, e a definição de um protocolo sobre casos de assédio sexual na UFSM (PEN n. 23081.074540/2024-58).
Os desafios da Casa Verônica – No artigo 27 do Eixo II da Política de Igualdade de Gênero, está previsto acolhimento e acompanhamento psicossocial organizacional para pessoas em situação de violência e quem as pratica no âmbito laboral. Em resposta via email, a equipe da Casa Verônica explica que o Espaço oferece acolhimento direcionado para este fim desde 2023, porém com uma equipe contratada, e não com servidores e servidoras do quadro permanente da UFSM. Assim, a manutenção do serviço depende da captação de recursos externos.
Esse é um dos desafios. Existem outros.
“Sobre o que ainda precisamos avançar para a implementação da política, entendemos que há um desafio na implantação de dispositivos que dependem de outros órgãos, setores, que envolvem temas acadêmicos, pedagógicos como presença de crianças em sala de aula ou de infraestrutura como a melhoria da iluminação noturna do campus. Além disso, tem sido um desafio para a CV enquanto serviço ter acesso às informações referentes a denúncias sobre assédio e violência de gênero que são recebidas pela Ouvidoria, conforme Art. 27”, afirmou a equipe.
No artigo 27 da Política de Igualdade de Gênero está previsto: § 1o Viabilizar que todos os registros recebidos pela Ouvidoria na área de gênero sejam tipificados e automaticamente notificados à equipe que atuar junto ao Espaço Multiprofissional Casa Verônica. “Na prática isso não ocorre, apesar das tentativas de articulação da CV junto à Ouvidoria e Corregedoria, a CV não recebe notificação das ocorrências”, afirma a equipe da Casa.
* mulheres cuja identidade de gênero corresponde ao sexo que lhes foi atribuído no nascimento.
** pessoa que foi atribuída ao sexo masculino ao nascer (AMAB), mas cuja identidade de gênero é feminina.
Texto: Bruna Homrich
Imagem: Banco de Imagens
Assessoria de Imprensa da Sedufsm