Por que o mundo não se revolta contra o genocídio palestino?
Publicada em
27/06/25
Atualizada em
27/06/25 18h10m
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Reportagem da Sedufsm traz análises sobre um tema que tem sido secundarizado pela mídia

O dia 7 de outubro de 2023 ficou marcado pela ação espetaculosa do grupo militar palestino Hamas, que saiu da Faixa de Gaza e, já em território israelense, foi responsável pela morte de cerca de 1.200 pessoas, sem que, em um primeiro momento, houvesse uma reação das forças de segurança de Israel.
O discurso majoritário na imprensa ocidental foi o de classificar o ato como um crime bárbaro. Entretanto, as causas desse enfrentamento são pouco discutidas. Além disso, a indignação com a morte de israelenses não parece alcançar o mesmo tom quando se fala do massacre de mais de 50 mil palestinos e palestinas em Gaza, desde que o terceiro exército mais poderoso do mundo passou a atacar e ocupar a região, após o 7 de outubro. Escolas, hospitais, centros de ajuda humanitária foram atingidos, matando em sua maioria, mulheres e crianças, mas atingindo também muitos jornalistas.
Simone Munir Dahleh, de ascendência palestina, é doutora em Comunicação e já atuou como professora substituta na UFSM. Para ela, há uma desigualdade de tratamento dada pelos meios de comunicação e, com isso, a narrativa midiática tende a ser muito mais pró-Israel do que pró-Palestina. Entre as causas citadas por Simone está a aproximação cultural de Israel ao Ocidente e a influência de grandes potências como os Estados Unidos. Em função disso, argumenta, a narrativa dominante é “moldada para favorecer Israel, ignorando, ou mostrando apenas uma fração do genocídio cometido contra o povo palestino”
A professora fala que o número de mortos palestinos já teria ultrapassado 60 mil, e, mesmo assim, isso não teria grande espaço na imprensa brasileira. “Acredito que, se fosse o contrário, o mundo estaria em choque, e não simplesmente ignorando e seguindo sua rotina como se nada estivesse acontecendo”. Simone percebe algumas causas para esse silenciamento midiático. “Muitos dos grandes conglomerados de mídia são ligados ao sionismo, como Google, Amazon, Meta, entre outros”. Por causa disso, muitos profissionais da área acabam silenciados, sob o risco de perderem seus empregos.
A agudização do conflito entre judeus e palestinos remonta pelo menos ao ano de 1948, quando a ONU criou o estado de Israel, tomando território e gerando a expulsão, naquela época, de cerca de 750 mil palestinos e palestinas, o que foi chamado de “nákba” (catástrofe). A ofensiva militar do governo israelense depois de 7 de outubro de 2023 gerou uma situação ainda pior, com cerca de 2 milhões de palestinos/as tendo que buscar refúgio.
“Eretz Israel”
Para o professor aposentado de História Contemporânea da UFRGS, Luiz Dario Teixeira Ribeiro, os ataques de Israel à Faixa de Gaza não tem a ver apenas com uma vingança pelo que ocorreu em 2023. Para ele, há um interesse geográfico e econômico. “O projeto da extrema-direita sionista é o domínio do território do Oriente Médio conforme o projeto de constituição do ‘Eretz Israel’, ou “Grande Israel’.”
Luiz Dario acrescenta ainda um outro aspecto que é “a importância estratégica da região para o controle das relações econômicas e políticas entre o Ocidente e a dinâmica região do Extremo Oriente, que tem a China suplantando os Estados Unidos e o Vietnã derrotando, em uma longa guerra de libertação, tanto o colonialismo francês como o neocolonialismo norte-americano”. Na visão do historiador, “controlar a região é possuir uma importância geopolítica máxima para atuar na política mundial e bloquear os projetos da China e sua rota comercial terrestre”.
*Professor Luiz Dario Teixeira Ribeiro
ONU, diplomacia e armas
Que papéis têm cumprido a Organização das Nações Unidas (ONU) e a diplomacia internacional na guerra de Israel contra Gaza? A essa questão, o pesquisador e professor de Relações Internacionais da UFSM, José Renato da Silveira, responde taxativamente: “A diplomacia só prospera num ambiente de diálogo”. Em relação à ONU, Silveira diz que, com todas as suas limitações dado o papel das grandes potências, as Nações Unidas só "podem" promover reuniões periódicas, observar, "monitorar", emitir relatórios e condenar os ataques. Para ele, essa situação reforça que esse órgão só funciona quando “os interesses das grandes potências não estão em xeque”.
Quanto a esse papel da diplomacia internacional, o professor de História da UFRGS, Luiz Dario Teixeira Ribeiro, tem visão parecida com a do pesquisador da UFSM. Para Ribeiro, “a diplomacia não consegue negociar a paz na região pela falta de interesse por parte das potências, envolvidas em um dos lados”.
Silveira, que também é líder do Grupo de Estudos Osvaldo Aranha (GEOA) da UFSM, aponta ainda causas econômicas para a manutenção do conflito. Ele cita a existência do que seria um lema para as empresas israelenses de fabricação de armas: "quando a morte é negócio, a paz é prejuízo". Sendo assim, questiona o professor da UFSM, como a diplomacia pode funcionar em um ambiente em que as rendas totais de três empresas sediadas em Israel foram de 13,6 bilhões de dólares desde o início da Guerra? É o maior faturamento registrado pelas empresas israelenses presentes no ranking do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo, explica ele.
*Professor José Renato da Silveira
Irã, genocídio e terrorismo
Em 21 de novembro de 2024, o Tribunal Penal Internacional (TPI) de Haia (Holanda) emitiu um mandado de prisão contra o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, e para o ex-ministro da Defesa, Yoav Gallant. Eles foram condenados por crimes de guerra e contra a humanidade, contra o povo palestino na Faixa de Gaza. De forma prática, a medida transforma ambos em procurados internacionais.
Em comunicado, o tribunal cita “ataques disseminados e sistemáticos contra a população civil de Gaza” no âmbito da guerra deflagrada em 7 de outubro de 2023, após ataques do Hamas que deixaram 1,2 mil mortos em Israel.
O mandado, contudo, não tem efeito para que ambos os líderes sejam presos dentro do estado do Israel. Enquanto isso, Netanyahu, que vive uma crise política interna, sendo julgado pela suprema corte de Israel, decidiu, semanas atrás, iniciar uma “guerra preventiva”, dessa vez, contra o Irã. O conflito está temporiamente suspenso, mas nos bombardeios efetuados em pouco mais de 10 dias, outras centenas de iranianos/as pereceram.
Na ótica do professor Luiz Dario Teixeira Ribeiro, a ação do governo israelense contra o território iraniano buscou desviar a atenção do mundo para o que acontece na região dos/as palestinos/as.
Esse mesmo entendimento é compartilhado pelo professor José Renato da Silveira. Para ele, a guerra de Israel contra o Irã constitui a “existência política de Netanyahu”. E acrescenta: “Manter-se em confrontos permanentes e guerras sem fim é uma estratégia política do premier israelense”. Para Silveira, é uma espécie de “cortina de fumaça”, fazendo com que os noticiários esqueçam do genocídio em Gaza. Ele lembra que Israel mantém nada menos que cinco frentes de guerra abertas ao mesmo tempo pelo mundo, com enormes custos militares, econômicos e sociais.
Apesar de todas as informações disponíveis, dos dados sobre morte e destruição ocasionados por Israel, e das acusações do TPI, nem todos concordam que há um genocídio em andamento em Gaza. Qual o motivo?
Para Ribeiro, a não aceitação do termo genocídio está ligada a uma imagem de exclusivismo da Segunda Guerra Mundial, a partir do genocídio cometido contra os judeus pelos nazistas. Além disso, complementa o professor, “aceitar a expressão (genocídio) exige uma autocrítica de todas as potências imperialistas e seus comportamentos até as descolonizações da Ásia e da África, o que desmontaria a imagem de que esses países levaram o progresso e a modernidade para o mundo”.
Uma outra questão presente nos debates é a que se refere ao conceito de terrorista. Afinal, se o grupo Hamas, que matou 1.200 pessoas, pode ser chamado de terrorista, como classificar Israel, que já ultrapassou a casa de 50 mil mortos em Gaza?
Para o historiador da UFRGS, o Hamas é aclamado terrorista por assumir um papel de libertação nacional na ausência de reconhecimento a um Estado Palestino. “Já Israel é um estado reconhecido e pode defender suas políticas terroristas como instrumento de autodefesa apoiado por vários estados com assento na ONU”. Ribeiro recorda que outros grupos, em luta por libertação nacional, também já foram chamados de terrorista, como foi o caso do IRA (Exército Republicano Irlandês).
O Brasil frente ao genocídio
Para Luiz Dario, a posição do Brasil nesse cenário tem sido contraditória: se por um lado condena Israel e busca a mobilização da ONU, por outro segue fornecendo petróleo para que o estado israelense siga praticando suas agressões.
No início de junho, Lula declarou que Israel comete um “genocídio premeditado” contra palestinos, em especial mulheres e crianças. Na mesma ocasião, o presidente defendeu que as grandes potências mundiais atuem para encerrar os ataques de Israel ao povo palestino.
José Renato da Silveira avalia que o governo do petista segue tradição em que prevalecem direitos humanos e solução pacífica de conflitos, embora não adote a mesma postura assertiva em relação à Ucrânia, o que seria, para o docente, uma contradição. “No caso palestino, o Brasil lidera um grupo de trabalho para criação do Estado da Palestina. Eu reconheço que a postura brasileira é corajosa. Volto a destacar que Israel conta com apoio integral dos Estados Unidos. É um alinhamento automático”, pondera.
Se diplomaticamente a condução da relação com o estado israelense suscita avaliações divergentes, ações internas de acolhimento a refugiados e refugiadas vêm acontecendo já há algum tempo no país. Segundo Giuliana Redin, que é docente licenciada do departamento de Direito da UFSM e atualmente coordenadora de Elegibilidade do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), entre 2023 e abril de 2025, 137 refugiados palestinos e palestinas foram reconhecidos pelo órgão. O Conare integra o Departamento de Migrações do Ministério da Justiça.
*Professora Giuliana Redin
Todas as informações oficiais do Ministério da Justiça e Segurança Pública a respeito das migrações no Brasil são públicas, estando disponíveis na plataforma DataMigra. Acesse aqui. Giuliana diz que, em virtude das condições objetivas verificadas no país de origem, as solicitações de refúgio de pessoas nacionais da Palestina têm sido deferidas pelo Conare.
Amparo legal
É na Lei nº 9.474, de 1997, que reside a essência da política de Estado brasileira para as e os refugiados. Ali era criado o Conare, responsável por decidir, em primeira instância, acerca dos pedidos de reconhecimento da condição de refugiado/a, de cessação ou perda desta condição. O órgão colegiado ainda orienta e coordena ações de proteção, assistência e apoio às e aos refugiados, além de aprovar instruções normativas esclarecedoras à execução da Lei de Refúgio.
“A Coordenação-Geral do Conare é uma unidade do Ministério da Justiça e Segurança Pública responsável pelo suporte para a tomada de decisão do Conare e processamento de todos os pedidos relacionados às competências do CONARE, conforme a Portaria do MJ n. 756 de 05/11/1998. Portanto, o órgão atua diante das situações que envolvem a proteção de solicitantes de refúgio e refugiados, tendo por base o princípio da territorialidade, ou seja, não possui competência para atuação nas situações que antecedem a solicitação de refúgio, que ocorre apenas após a entrada no Brasil (art. 7º, da Lei de Refúgio)”, explica Giuliana.
A docente diz que não existe, atualmente, uma política específica para acolhimento de nacionais palestinos e palestinas no Brasil. Em relação às e aos afegãos, por exemplo, essa política já existe, tendo em vista acordo de cooperação que criou o programa de reassentamento, admissão e acolhida humanitária por via complementar e patrocínio comunitário (PRVC-PC).
Qual o saldo político da guerra contra Gaza?
Na avaliação do professor José Renato da Silveira, o saldo político é diferente para cada um dos atores. No caso de Israel, reflete ele, o resultado a ser buscado é a "destruição do Hamas, mesmo que ao custo do genocídio de crianças e mulheres, tudo isso com o apoio dos Estados Unidos, país que inviabiliza qualquer ação da comunidade internacional”.
O que se vê, além de discursos e notas, ressalta Silveira, são ações voluntárias e corajosas de forças transnacionais, que acabam impedidas pelo poder militar de Israel, como foi o caso da ‘Flotilha da Liberdade’. Já o saldo político para o Hamas, ou ao menos o que deveria ser, conforme o professor, seria a “autoconsciência de que provocou (catalisou) e está provocando a destruição de Gaza, do próprio Hamas e do povo palestino”.
No que se refere a outras potências, o pesquisador da UFSM ressalta que os Estados Unidos são os “fiadores de Israel” nas guerras que, principalmente Netanyahu, promoveu ao longo do tempo. Em termos realistas, diz ele, é um saldo positivo. Já no que se refere às demais grandes potências, avalia que expressam condenações em “notas e em discursos ao vento", mas nada de concreto fazem contra Israel.
O que fazer para encerrar a guerra?
Na visão do professor Luiz Dario Teixeira Ribeiro, uma das possíveis soluções para encerrar a guerra de Israel contra Gaza poderia ser um envolvimento maior da China e Rússia, fazendo pressão, na medida em que não se tem podido contar com a diplomacia da ONU, que se encontra desmobilizada.
Para José Renato da Silveira, as únicas formas de acabar com o conflito em questão passam pela “criação do Estado da Palestina” ou, “o cenário sombrio e nefasto, que está se avizinhando, que é a continuação do genocídio perpetrado por Israel e a expulsão dos palestinos de Gaza que sobreviverem”.
Uma palestina na UFSM
Segundo o Escritório Central de Estatísticas da Palestina (PCBS), 14,9 milhões de palestinos/as viviam ao redor do mundo ao final de 2024, com 5,5 milhões na Palestina histórica e 7,6 milhões na diáspora, principalmente em países árabes (6,4 milhões).
Dados da Federação Palestina Brasileira (Fepal) indicam que a diáspora palestina no Brasil é constituída por pelo menos 200 mil imigrantes e refugiados/as.
Simone Munir Dahleh, que até fevereiro deste ano exercia o cargo de professora substituta no departamento de Ciências da Comunicação da UFSM, não está na condição de refugiada, mas guarda uma relação direta com a Palestina, onde viveu dos 5 aos 9 anos, período de sua alfabetização. Sob orientação da professora Liliane Brignol, ela elaborou a tese intitulada “A trama tecida por mulheres palestinas: relatos biográficos dos usos táticos de tecnologias digitais”, vencedora do Prêmio Compós de Teses Eduardo Peñuela Cañizal 2025.
A descendência palestina de Simone vem tanto da parte de seus avós maternos, Abdalah e Nabila, quanto do avô paterno, Mustafa. A avó paterna, Lúcia, é brasileira com descendência italiana e atualmente mora na Cisjordânia, Palestina.
*Simone Munir
Do período vivido na Palestina, Simone, que hoje tem 30 anos, guarda memórias felizes, tristes e assustadoras. Em entrevista à Sedufsm, ela rememora com alegria as celebrações do Eid, quando sua família presenteava as crianças com dinheiro e lembranças; as festas de casamento para as quais se arrumava com suas irmãs; os piqueniques em família e as idas para colher azeitonas.
“Já as lembranças tristes e assustadoras estão ligadas à ocupação violenta de Israel sobre a Palestina. Vivi períodos de toque de recolher, em um deles, cheguei a me perder das minhas irmãs. Em outra ocasião, um tanque de guerra apontava para nossa casa, e tivemos que nos abrigar debaixo das escadas. O 11 de setembro também nos causou muito medo, pela incerteza do que poderia acontecer conosco. Esses acontecimentos me marcaram profundamente, assim como o momento da deportação, em 2005, quando tentamos retornar à Palestina e fomos impedidos, escoltados por um militar israelense de volta ao Brasil”, conta Simone.
Uma vez que cresceu e se alfabetizou na Palestina, ela considera que se constituiu primeiro como palestina, e depois como brasileira. “Esses dois países sempre farão parte de quem eu sou e moldam a forma como enxergo o mundo ao meu redor. Minha relação com a Palestina continua muito forte: está presente na comida árabe que preparo para matar a saudade, nas músicas que escuto, nas conversas diárias com minha família, na pesquisa que quero continuar construindo e nas pessoas que sigo nas redes sociais para me manter informada sobre o que acontece lá”, partilha Simone. Ela diz que, com a internet, a manutenção do vínculo foi facilitada, visto que anteriormente, quando o diálogo era principalmente por telefone, as ligações eram muito caras.
Hoje, Simone tem se sentido positivamente surpresa pois vem sendo convidada a participar de eventos, entrevistas em rádio e grupos de extensão na UFSM, para falar sobre a causa palestina. “Isso me alegra, pois sinto que estou contribuindo para divulgar e conscientizar sobre a Causa Palestina, algo urgente e necessário nos dias de hoje”, conclui.
Sindicalismo e as lutas mundiais
A diretoria da Sedufsm ressalta que, ao longo de seus 35 anos de existência, sempre se posicionou em favor de valores humanitários, pela paz, contra as guerras. Nesse sentido, o entendimento é de que o debate de ideias é fundamental para que as pessoas, especialmente as e os docentes, possam receber informações qualificadas e se posicionar. “No caso da guerra de Israel contra palestinos/as, a diretoria deste sindicato não tem dúvidas de que há um genocídio em curso e de que é preciso pará-lo imediatamente. Nossa posição sempre será em favor dos oprimidos, pois esse é a função de um sindicato: postar-se ao lado de quem luta contra o neocolonialismo e a favor da liberdade dos povos”.
Texto: Bruna Homrich e Fritz Nunes
Arte: Italo de Paula
Fotos: Arquivos Pessoais/Arquivo Sedufsm
Assessoria de Imprensa da Sedufsm
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