Uma história feminina em meio à Revolução Farroupilha
Publicada em
12/09/25
Atualizada em
12/09/25 15h40m
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Professor Diorge Konrad sugere o filme ‘Anahy de las Misiones’, mas também indica livros sobre o 20 de setembro gaúcho

Nesta sexta, 12, a dica cultural é do professor Diorge Konrad, do departamento de História da UFSM. Ele sugere uma leitura crítica da Revolução Farroupilha através de diversos autores e autoras. Mas, a sugestão principal é assistir ‘Anahy de las Misiones’, filme que estabelece relação com o 20 de setembro através de um olhar feminino. Leia abaixo a dica.
“Ao passar dos anos, gosto de me repetir, afirmando que “a cada Semana Farroupilha, em geral, a cada 20 de setembro, em particular, a formação social do Rio Grande do Sul se vê imersa num debate entre memória, tradicionalismo e história”. Todas se mesclam entre si, é verdade, mas em nome da tradição e da memória, muitas vezes o processo histórico rio-grandense é constantemente revisitado. De forma parcial e fragmentária, a fim de reforçar o a fim de justificar o presente de dominação política e econômica, ou mesmo um passado perdido, esta versão visa manter os privilégios de dominação de classe, a partir de uma visão romântica de mundo. Mais do que esclarecer o que foi a Guerra Civil dos Farrapos, em todas as suas dimensões, esta visão se apropria da história com interesses político-ideológicos contemporâneos, dirigidos por uma visão liberal-conservadora de mundo.
Existe farta literatura sobre o tema e eu poderia indicar algumas, entre tantas obras clássicas, como boa dica de leitura. Iniciando por Nelson Werneck Sodré, em “As razões da Independência”, que considerou a Farroupilha entre a contradição do avanço liberal e do regresso conservador pós-Independência política, no contexto de um Império centralizador e escravocrata” (São Paulo: Difel, 1986).Eu poderia continuar com Moacyr Flores, em “Modelo político dos Farrapos” para quem “a principal marca da Guerra Civil foi as disputas entre os liberais moderados (tanto monarquistas como republicanos) e os liberais exaltados (republicanos) contra o absolutismo do monarca, na defesa de um governo constitucional que garantisse a liberdade dentro da lei e a propriedade” (Porto Alegre: Mercado Aberto, 1978).
Ainda seria possível citar Sandra Pesavento, em “A Revolução Farroupilha” a qual propõe que uma visão crítica sobre o tema precisa resgatar a rebelião comandada pelos senhores de terra e gado gaúchos como uma luta contra a dominação que a oligarquia do centro do país impunha às províncias, contra a centralização política e administrativa do Rio de Janeiro, tendo suas raízes na tentativa de quebra da subordinação de uma economia voltada para o abastecimento do mercado interno, sendo que, neste processo, é que a luta política de ideia inicial federativa partiu para a adoção da República liberal e de caráter separatista (São Paulo: Brasiliense, 1985).
Entre tantos outros, restaria indicar os ensaios historiográficos de Raul Machado Kroeff Carrion, o qual reacendeu o debate sobre o tema farroupilha no Rio Grande do Sul, em “Os Lanceiros Negros na Revolução Farroupilha” (2003) e “Revolução Farroupilha (2005), defendendo que é preciso ver o sentido progressista da Revolução Farroupilha, em seu tempo histórico, quando ela representou o enfrentamento de um Império centralizador e escravocrata, defendendo a República e a Federação, ainda que se reconheça a apropriação ideológica da Farroupilha pela oligarquia pecuarista, a qual idealiza os fazendeiros e fecha os olhos para as contradições e vacilações frente à escravidão, ignorando os protagonistas negros, índios, mestiços e brancos pobres.
Para Carrion, é preciso buscar as raízes mais profundas da Farroupilha, entendendo a sua relação com as demais revoluções do Período Regencial, seu caráter republicano e federalista e o seu significado “separatista”, compreendendo os setores oprimidos (como os Lanceiros Negros), sem cair na visão tradicional nem na leitura histórica que não reconhece o contexto da época, ambas visões simplórias e anacrônicas, não percebendo as contradições entre os farroupilhas de maioria abolicionista e uma minoria escravista.
Dito isto, contudo, minha dica é cinematográfica. Pensaram que viria algo de “O tempo e o vento”, do meu conterrâneo Érico Veríssimo, nestes 120 anos de seu nascimento, 50 anos de sua morte? Indico também, mas, o que foi dito acima, é para entender melhor o contexto em que se passa “Anahy de las Misiones”, o vigoroso filme do saudoso diretor Sérgio Silva (1945-2012), lançado em 1997 e disponível no YouTube.
Na estória, uma mulher (em interpretação icônica da grande atriz Araci Esteves) e seus filhos (Dira Paes, Marco Palmeira e Fernando Alves Pinto) puxam um carroção, vencendo os medos, trabalhando para sobreviverem, expropriando os pertences dos mortos e vendendo os mesmos aos soldados farroupilhas e legalistas, na então Província de São Pedro. Na extensa jornada, assim como a Farroupilha, que durou dez anos, a família também vai sendo diluída pela guerra civil, sendo atravessada pelas personagens de um revoltoso e uma prostituta (Mateus Nachtergaele e Giovana Gold). Essa película imperdível, ganhadora do Festival de Brasília também em 1997 (melhor filme, melhor cenografia, melhor roteiro, melhor atriz - Araci Esteves, melhor ator - Marcos Palmeira e melhor atriz coadjuvante - Dira Paes), entre outras premiações, não envelheceu com a virada do milênio.
E onde está o porquê desta minha dica? Na inversão tradicional do mito machista que celebra os “centauros do Pampa”, leitura sempre masculinizada dos embates históricos rio-grandenses. Anahy protagoniza uma virada desta lógica conservadora e estereotipada, mítica nas rememorações do 20 de Setembro, as quais insistem em esconder as contradições de gênero e de classe, presente nas versões tradicionais, seja na prosa ou no verso, na memória e na História.
Desde a primeira cena, que se passa no inverno de 1839, quando Anahy termina com a “sombra de vida” de um farrapo, degolando-o por “não ter mais valia para o mundo”, com ele dando “gracias a madrecita”, até quando ela afirma, ao final, “daqui para delante, vamos seguir sempre para a frente ... pra esse mundão feito de guerra”, este roteiro sensacional completa uma saga de um excelente Cinema que você não deve perder. E se já assistiu, reveja, com os olhares de 2025. Não se arrependerá.”
Diorge Alceno Konrad
Professor Titular do departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da UFSM.
Resumo da dica
O que? Filme
Qual? Anahy de las Misiones
Direção? Sergio Silva
Duração? 1h50min
Onde assistir? Disponível para assinantes da plataforma Amazon Prime. E gratuitamente no link do Youtube.
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