Banquete de consequências SVG: calendario Publicada em 17/08/2020 SVG: views 4459 Visualizações

“Vejo, então, que a minha coluna se dirige, homem por homem, em direção ao oficial da SS. Fico calculando: se ele perceber o peso da sacola que me puxa para o lado haverá no mínimo uma bofetada que me fará voar na lama; isto eu já conhecia de outra ocasião....Porém, quanto mais me aproximo daquele homem, deixo meu corpo cada vez mais ereto, para que ele não perceba que estou carregando um peso. Ei-lo agora à minha frente: alto, esbelto, elegante, num uniforme perfeito e reluzente – uma pessoa bem trajada e cuidada, muito distante das nossas tristes figuras de rosto sonolento e aparência decaída. Ele se sente muito à vontade. Apoia o cotovelo direito na mão esquerda, e com a mão direita erguida executa um leve aceno com o indicador, ora para a direita, ora para a esquerda. Nenhum de nós tinha a menor ideia do significado sinistro daquele pequeno gesto com o dedo – ora para a esquerda, ora para a direita, com frequência muito maior para direita. Chega a minha vez. Alguém me sussurrou que para a direita (olhando da nossa direção) ia-se para o trabalho; para a esquerda, um campo de doentes e incapacitados para o trabalho. Simplesmente deixo os fatos acontecerem. É a primeira que vez faço isso. Mas tomarei esta atitude muitas vezes de agora em diante. Minha sacola me puxa para a esquerda, mas me aprumo e fico ereto. O homem da SS me olha criticamente. Parece hesitar, põe as duas mãos nos meus ombros; faço um esforço para assumir uma postura do tipo militar.

Fico firme e ereto; lentamente, ele faz girar os meus ombros – e lá me vou para a direita. À noite, ficamos sabendo o significado desse jogo com o dedo indicador: era a primeira seleção! A primeira decisão sobre ser ou não ser. Para a imensa maioria do nosso transporte, cerca de 90% foi a sentença de morte. Ela foi levada a cabo em poucas horas. Quem era mandado para a esquerda marchava diretamente da rampa da estação para um dos prédios do crematório, onde – segundo me contaram pessoas que ali trabalhavam – havia letreiros em diversas línguas europeias que caracterizavam o prédio como casa de banhos. Então todos os participantes do transporte mandados para a esquerda recebiam um pedaço de sabão marca “Rif”.

(...) Perguntei a companheiros que já estavam há mais tempo no campo de concentração onde poderia ter ido parar meu colega e amigo P.

– “Ele foi mandado para o outro lado?”

– “Sim, respondi”.

– “Então podes vê-lo ali, disseram”.

“-Onde?”

Uma mão aponta para uma chaminé distante algumas centenas de metros, da qual sobe assustadora e alta labareda pelo imenso e cinzento céu polonês para se extinguir em tenebrosa nuvem de fumaça.

– “O que há ali?”.

– “Ali o teu amigo está voando para o céu, é a resposta grosseira.

Continuo sem entender, mas logo começo a compreender, assim que me “iniciam” no assunto”.

Esse breve trecho macabro está no livro Em busca de sentido de Victor E. Frankl, o escritor e psiquiatra que relata a sua dramática história como prisioneiro no campo de concentração durante a II Guerra Mundial (1939-1945).

Frankl escreveu sobre a vida no Holocausto: “Todos os dias, cada hora trazia a oportunidade de tomar uma decisão, que determinaria se você se submeteria àqueles poderes que ameaçavam roubá-lo de você mesmo e sua liberdade interior; que determinaria se você tornaria ou não um brinquedo das circunstâncias, renunciando à liberdade e à dignidade para ser moldado como preso prototípico”.

Será que nas circunstâncias mais terríveis, somos capazes de nos aperfeiçoar? É possível dizer “sim” à vida apesar de todos os aspectos trágicos da existência humana.

Espera-se um certo “otimismo” com relação ao nosso futuro e que ele possa fluir das lições retiradas do nosso “trágico” passado.

Enfim, diante dessa história de Frankl, o que estamos aprendendo em 2020 diante do covid-19? Quais as lições para o futuro? Qual o legado?

Como diria o escritor Robert Louis Stevenson: “Todo mundo mais cedo ou mais tarde senta-se para um banquete de consequências”.

 

Sobre o(a) autor(a)

SVG: autor Por José Renato Ferraz da Silveira
Professor do departamento de Economia e Relações Internacionais da UFSM

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