Criatividade rima com produtividade? Publicada em 02/08/2023 4115 Visualizações
Comecei este texto na fila do supermercado. Segunda-feira. Filas longas. Muito tempo para esperar e eu com pouco tempo para escrever. É curioso como o meu principal exercício criativo é o que acontece nas brechas do tempo. Enquanto espero, enquanto lavo louça, enquanto tomo banho, as ideias vão surgindo e vou fazendo notas mentais. Das frases, dos trechos, parágrafos inteiros, quando tenho sorte. Quando finalmente chego no “papel”, que não passa de um bloco de notas de celular, já está quase tudo pronto.
Pausa para passar as compras no caixa do mercado. Mas e de onde vêm as ideias, coitadas, que precisam se esgueirar, entre os ponteiros do relógio à la Indiana Jones? (Uma ressalva para a referência démodé, mas ainda ícone de aventura e de destreza pra mim). Por qual força brotam em uma cabeça lotada de tarefas e de “tem quês”? Tenho que corrigir um texto, preparar uma aula, ir no mercado, marcar pediatra, estender a roupa, correndo, porque tenho que garantir que os raios tímidos do inverno sequem um varal cheinho.
Pausa para pagar as compras. Ensacolar. Compras no porta mala e sigo criando meu texto enquanto dirijo. Debaixo dessa pilha de tarefas mentais, lá vem uma coitada de uma ideia, vem trôpega, a pobrezinha, mas vem. É ela que garante a vida e a existência deste texto que você agora lê. Agradeça a ela. Uma sobrevivente. E que ainda me põe a pensar, o quão maltratada anda a minha criatividade. Mas não só a minha. Quero te dizer que possivelmente a tua também. Confundimos-a com produtividade. E, veja bem, não é qualquer rima que garante similaridade no sentido, muito pelo contrário. Muitas vezes, o que rima no sintagma, descarrila no paradigma. Está certo que alta criatividade pode resultar em alta produtividade, mas o contrário também é verdadeiro?
Até que ponto as ideias Indiana Jones conseguem fugir das pedras gigantes do cotidiano que procuram, insistentemente, acabar com elas? Mas olha, em dias cheios de tarefas, ensinar sobre a criatividade faz parte das minhas atividades preferidas. A cada turma nova que chega na disciplina de criação publicitária eu começo logo dizendo: vocês são pessoas criativas. A criatividade é uma caraterística inata. Eu gosto muito de uma citação de Winnicott que diz: a criatividade é um colorido de toda atitude em relação à realidade externa. É força que nos mantém em movimento. Para o autor, a percepção criativa permite que sintamos que a vida é digna de ser vivida.
Mas também é de Winnicott o pensamento de que a aspereza da vida pode nos afastar desse colorido fruto da inventividade. É justamente quando nos tornamos pessoas sisudas demais, adultas demais, rígidas, pouco sensíveis. Quando a casca fica grossa demais, impenetrável. É também quando nos afastamos dos aspectos lúdicos da vida e perdemos a capacidade de brincar. Brincar mesmo. Lembra um pouco de quando você era criança. Ou pare um instante e repare no seu filho brincando. Caixa vira espaçonave? O cobertor vira barraca? Lona de circo? Cadeira vira trem? Panela vira bateria? Você deve estar se perguntando aonde foi parar essa sua capacidade.
Quando foi que a gente parou de inventar, de criar, de colocar uma coisa no lugar de outra, de contar histórias incríveis, viagens à lua, castelos, dragões, dinossauros. A gente parou de inventar quando perdemos o tempo da brincadeira, o tempo ócio. Quando ocupamos todos os nossos minutos com trabalho: profissional, parental ou doméstico. Todos juntos. É por isso também que o sociólogo Domenico De Masi fala sobre o ócio criativo e sobre o tanto que recebemos de educação sobre como trabalhar e não sobre como descansar, devanear, divagar.
Mas nos últimos tempos um movimento interessante vem acontecendo. Uma organização sem fins lucrativos chamada 4 Day Week vem conduzindo testes globais sobre a carga horária reduzida de trabalho. Aqui no Brasil, a empresa Reconnect Happiness at Work conduzirá o experimento, entre junho e dezembro de 2023. De acordo com a Revista Exame, em outros lugares do mundo essa vem sendo uma experiência muito positiva: no Reino Unido, 92% das empresas participantes decidiram manter o formato de trabalho de quatro dias semanais e tiveram um aumento de 35% na receita média. 90% dos funcionários disseram que gostariam de continuar trabalhando apenas quatro dias, sendo que 15% desses, disseram que nenhum dinheiro é suficiente para que aceitem voltar ao expediente de cinco dias. Além disso, 39% dos trabalhadores se sentiram menos estressados, 71% reduziram sintomas de burnout e 54% acharam mais fácil conciliar vida pessoal e profissional.
Aqui no Rio Grande do Sul, a agência de comunicação Shoot foi pioneira e implementou a rotina de trabalho de 4 dias desde janeiro de 2022. Desde lá a produtividade e os lucros da agência não foram afetados, além disso, nenhuma pessoa teve descontos em sua folha de pagamento, apesar da redução da jornada. No relato de quem lá trabalha, os índices de satisfação e de felicidade aumentaram muito. As experiências de 4 dias nos mostram que não é exatamente a produtividade que não rima com criatividade, rimar até rima, mas precisa de tempo. Não de qualquer tempo, mas de tempo livre, tempo para a vida, tempo para passar consigo e com seus amores. Tempo despreocupado. Tempo para brincadeira e para fazer nada também. Porque, no final das contas, criatividade rima mesmo é com felicidade.
Sobre o(a) autor(a)
Por Juliana PetermannProfessora Associada do departamento de Ciências da Comunicação da UFSM