Direito à cidade? As segmentações de um traçado de desigualdades
Publicada em
04/10/2023
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O direito à cidade diz respeito ao direito a ser incluído nos benefícios da vida urbana (LEFEBVRE, 2001). O Estatuto da cidade, Lei n.º 10.257/2001, traz a exigência da função social da propriedade, presente na Constituição de 1988, e inclui diretrizes sobre transporte, moradia digna, combate à especulação imobiliária, democracia e participação popular. A qualidade de vida na cidade envolve muitos acessos: lazer, esporte, cultura, educação, saúde, trabalho, moradia, descanso, saneamento, iluminação, transporte/mobilidade, segurança, equilíbrio ambiental, etc. Cada um destes aspectos representa uma dimensão política do direito à cidade – que também inclui os direitos a pensar e a mudar a cidade –, em oposição a segregações e a desigualdades espaciais, marcadas por infraestruturas profundamente díspares.
Os conflitos sociais também são vividos de modo distinto nos diferentes espaços da cidade: racismo, sexismo, homofobia, transfobia, discriminação religiosa, entre outros, possuem características singulares, que atravessam espaços/posições sociais. As desigualdades envolvendo práticas espaciais, são expressão de classe dos processos de urbanização – “as estratégias de classes (inconsciente ou conscientemente) visam a segregação” (LEFEBVRE, 2001, p. 98) – seguidas da privatização da vida e das queixas da população, que reivindicam serviços públicos e bem-estar coletivo.
O direito à cidade se refere, ainda, aos direitos à diversidade e às identidades diversas, bem como ao reconhecimento social da pluralidade. O sentido de pertencimento à cidade passa pelo fato desta, além de propósitos mercantis privatistas e especuladores, estar baseada nos interesses da coletividade, dos “usos” e dos “usuários” (LEFEBVRE, 2001, p. 127). No entanto, a cidade tem subordinado grande parte de seus habitantes, enquanto “os atores mais poderosos se reservam os melhores pedaços do território e deixam o resto para os outros” (SANTOS, 2002, p. 79).
Na lógica competitiva predominante, “os lugares repercutem os embates entre os diversos atores e o território como um todo revela os movimentos de fundo da sociedade” (SANTOS, 2002, p. 80), agravando as disparidades de acesso a recursos infra estruturais, econômicos, políticos, o que repercute nos níveis de vida da população.
Uma expressão destas assimetrias, no âmbito das cidades, pode ser percebida a partir de um caso como Pelotas (RS), que se poderia tratar, aqui, como Satolep, pseudônimo para pensar tantas outras cidades, como a própria Santa Maria, no coração do Estado. Pelotas fica na região sul do Rio Grande do Sul, e é marcada pelas fortes presenças do agronegócio e do comércio. Conhecida pela produção do pêssego, que abastece as agroindústrias local e nacional, pelas instituições de ensino (UCPEL, UFPel, IFSUL, entre outras) e pelos grandes casarões, repletos de ladrilhos hidráulicos; teve seu centro histórico tombado, em razão do reconhecido patrimônio arquitetônico. Trata-se de uma cidade repleta de controvérsias, encerrando uma dívida imensa, desde o passado, com boa parte da sua população.
Cidade da antiga abundante presença indígena na região da Lagoa dos Patos e da luta indígena para permanecer existindo e reexistindo na atualidade, após os sucessivos processos colonizadores. Região das charqueadas e da tenebrosa instituição da escravidão, que subumanizou brutalmente os/as trabalhadores/as africanos/as, brutalidade que contou com inúmeras insurreições, como evidenciam os quilombos do sul do estado, um dos quais, localizado na região da Serra dos Tapes, que pertencia a Pelotas, foi liderado por Manoel Padeiro, o Zumbi dos Pampas, por volta de 1834/1835, que, espera-se, venha a ser reconhecido como o primeiro herói negro do estado, a partir do Projeto de Lei da deputada Laura Sito (PT).
Pelotas/Satolep, a Princesa do Sul, é muito desigual. No passado e no presente, coexistem muitas cidades. Nascer/viver em Pelotas é uma experiência assim, na qual se vê, de um lado, os grandes casarões e, de outro, as grandes periferias. De um lado, os jovens andando dos bairros da quebrada a pé até o centro da cidade para economizar a passagem – às vezes, porque vão precisar do dinheiro durante a semana e, outras, porque querem usar o valor do vale transporte para tomar uma cerveja. Usualmente, os jovens com recursos escassos podiam tomar sua cerveja nas animadas calçadas da cidade, mas o Decreto n.º 6.766/2023 – a versão pelotense da Lei Complementar n.º 159/2022, de Santa Maria – proibiu estas práticas, prevendo multas a quem a descumprir. Pelotas também já foi a cidade dos trailers, os antigos “bicões”, que vendiam lanches de rua (baurus, x-saladas, cachorros quentes etc.), e que a racionalização ordenadora, com a Lei n.º 5.717/2013 também proibiu, desfazendo os encontros que esses espaços favoreciam.
Pelotas é cidade de arquiteturas impactantes: casarões, teatros (7 de Abril, Guarany), museus (da Baronesa, por exemplo), catedrais (São Francisco de Paula, entre outras), mercado público, cinemas – muitos dos quais viraram estacionamentos de automóveis. É a cidade do Brasil de Pelotas, e de sua massa Xavante, da baixada, e é a cidade do clube Pelotas, também. Como município costeiro, que inclui a Colônia de Pescadores Z3, ainda encanta a relação artesanal que lá se estabelece entre água, humano, rede e peixe.
Cidade de gente famosa (Juliano Cazarré, Glória Menezes, Yolanda Pereira, Kleiton e Kledir, Vitor Ramil, Emerson, da seleção brasileira, Taison, colorado antirracista, entre outros), foi parte do cenário da minissérie Incidente em Antares (baseada na obra de Érico Veríssimo) e na qual se passa e é filmado Domingo (2019), dirigido por Clara Linhart e por Fellipe Barbosa, que mostra uma trabalhadora doméstica de uma casa da elite pelotense, assistindo à posse de Lula, quando este foi eleito presidente da república pela primeira vez, em 2003. É a cidade de um importante curso de epidemiologia, que produziu pesquisas de repercussão internacional, cujos/as pesquisadores/as contribuíram para o entendimento e para os combates à Covid-19 e à ignorância política, a respeito da pandemia (que, no Brasil, teve início em 2020).
Igualmente, é a Pelotas da voz do gueto, que ecoa cada vez mais alta, com os filhos/filhas/filhes das periferias, das aldeias e dos quilombos, tomando seus direitos à palavra, à universidade, à identidade, à cultura e à cidade. Satolep dos Ramils, das milongas, e do seu vínculo com os pampas argentino e uruguaio. Princesa do samba, do bar Liberdade e do sopapo (instrumento afro que as pesquisas disputam ter ou não sido criado no município).
Satolep guarda várias cidades. Faz calor, mas também é muito úmida e fria. A linha fria do horizonte (ver documentário homônimo, dirigido por Luciano Coelho) passa por lá. Tem o frio do vinho e da lareira e tem o frio do chá de casca de limão e da latinha de álcool, para aquecer o banheiro; tem o frio dos casacos quentes europeus e tem o frio das várias camadas de roupas finas; o frio das botas que aguentam -15º e o frio das botas maiores que os pés, herdadas do irmão, da irmã ou do primo mais velho. Sim, uma Pelotas da estética de um frio desigual.
Satolep do sopapo e do piano; dos jovens que sonharam em ser músicos, mas que, não raro, acabaram trabalhando nas fábricas de conservas da cidade; e de alguns que, sim, mesmo sem heranças, com dedicação, tornaram-se músicos talentosos. Cidade do Laranjal, laguna chamada Lagoa dos Patos, espaço público e que seria ainda mais, não fosse a distância de muitos bairros, mas que as “caravanas” (como na canção do Chico Buarque) deslocam para lá.
Cidade da bala de coco na parada de ônibus, parte de um circuito do doce que não está nas docerias pelotenses nem na Fenadoce; é lugar de fel e de doçuras, dos doces (fios de ovos, quindins, bombons...) que, na periferia, aparecem nas oferendas aos orixás. Cidade do “merece”, de muitas esculturas semelhantes à de Borba Gato espelhadas pela paisagem. Cidade em que nasceu o governador privatista Eduardo Leite (PSDB) e que é lugar de um importante movimento LGBTI+. Cidade de Simões Lopes Neto e, também, da mestra Sirley Amaro, que morou na Cohab Lindóia e que será a primeira mulher negra a receber o título de doutora Honoris Causa, pela UFPel.
Cidade das casas de estantes cheias de livros – capital cultural objetivado, para usar uma expressão do sociólogo Pierre Bourdieu – e de outras casas, sem estante alguma; de quartos com mesa de estudo, laptop, luminária adequada e ar condicionado e, de outros, do pé de mesa de costura, do caderno e do mochinho improvisado. Cidade dos carros com ar condicionado circulando ao lado das bicicletas – não, as dos ciclistas profissionais, mas as dos/as trabalhadores/as, que vão de bike para o trabalho: desempregos/as, mulheres que deixam seus filhos/as nas creches e nas escolas, mecânicos automotivos sem carro, pedreiros sem casas, trabalhadoras domésticas que deixaram suas residências e seus/suas filhos/as para cuidar dos outros. Lugar do posto de saúde e das suas longas filas, nas quais, às vezes, espera-se uma madrugada inteira em cadeira de praia, tomando chimarrão, para, no outro dia, descobrir que não tem mais fichas para o clínico, para o ginecologista, para o pediatra.
Cidade das charqueadas escravistas que, hoje, recebem glamourosas festas de casamento de gente branca. Cidade de Porto e de trilhos de trem, e de moradores, que, às vezes, ocultam os nomes dos bairros onde moram para escapar de estigmas sociais. Cidade dos inúmeros terreiros e das igrejas, dos acampamentos evangélicos em tardes e em noites de Carnaval. Cidade de paradas de ônibus cheias em dias de chuva, de pés molhados, embalados, às vezes, com uma sacolinha plástica, para evitar a dor de garganta, e de ônibus cheios de trabalhadoras, correndo para tentar um assento para descansar as pernas, porque, quando chegar em casa, tem mais: mais comida para cozinhar; mais criança para alimentar; mais cama para arrumar.
Pelotas do carnaval de rua, das festas de bairro, dos blocos burlescos (Bruxa, Bafo de Onça e outros), dos botecos de esquina, dos namoros de rua e da ousadia de quem se permite viver, sonhar e surpreender. Satolep, mas poderia ser Rio Grande, Santa Maria, Porto Alegre..., é muitas cidades dentro de uma só. A cidade vista/vivida do centro é diferente da cidade vista/vivida da periferia; a cidade experienciada pelas classes médias e altas não é a mesma cidade das classes populares. O frio arde de modo distinto e o minuano sopra de maneira mais cortante na quebrada.
O presente não se basta, e a cidade, de mãos dadas com o campo, é uma fenda para o futuro e uma disputa, uma luta por políticas públicas inclusivas. Apesar de todas as práticas, e de todas as normas e de todos os decretos que cerceiam os direitos à cidade, permanecerá “crescendo o vermelho gente,/ entre pedra e pedra,/ pela terra a dentro.” (como em Brasília, de Paulo Leminski). A esperança move os habitantes do campo e da cidade. E, seja no solo, sacrificado pelo agronegócio, seja na cidade, uma flor sempre há de romper o asfalto, o medo, o ódio (como em A flor e a náusea, de Carlos Drummond de Andrade). Flores seguirão nascendo na bela Pelotas e em outras cidades, também. O importante é recusar a cumplicidade com o que não merece. O que foi feito, com força social, poderá ser desfeito. O direito à cidade é uma construção política contra as humilhações e pela dignidade dos que vivem no andar de baixo.
Bibliografia:
LEFEBVRE, Henry. Direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2002.
Sobre o(a) autor(a)
Professora do departamento de Ciências Sociais da UFSM. Doutora em Sociologia