Flexibilidade e tempo de trabalho: desafios do mundo laboral na contemporaneidade SVG: calendario Publicada em 28/04/2025 SVG: views 225 Visualizações

"O cenário laboral atual é de insegurança, de faltas de recompensa e de reconhecimento, levando também ao adoecimento mental, ao burnout, à depressão, quer dizer, às doenças da alma [...]"

O tema da flexibilidade é central no mundo do trabalho nos dias de hoje. Sob o manto do termo “flexível”, aparentemente positivo, as jornadas, os contratos, os rendimentos e os direitos laborais têm sido profundamente impactados. Verifica-se um tempo de trabalho excessivo para alguns e insuficiente para outros. Enquanto uma parte da população trabalha à exaustão, outra perambula, à cata de qualquer tipo de expediente, para escapar da condição de desemprego.

Estamos passando por um 1º de maio que, depois de muitos anos, traz uma agenda ousada e de esperança para a classe trabalhadora: o fim da jornada 6x1. O movimento Vida Além do Trabalho (VAT), que teve início com o vereador Rick Azevedo e que resultou no Projeto de Lei (PEC n.º 08/2025), da deputada federal Erika Hilton (PSOL), representa a possibilidade de defesa da vida, em reação ao avanço das fronteiras do trabalho heterodeterminado. Está em pauta, nesse projeto, o direito ao tempo livre, em oposição ao cansaço, para que o avanço tecnológico possa trazer um mínimo de compensação aos/as trabalhadores/as.

Foi por motivo semelhante que surgiu a data do primeiro de maio como dia do trabalho. Em maio de 1886, na Revolta de Haymarket, também conhecida como o massacre de Haymarket, na cidade de Chicago/Estados Unidos, um grupo de trabalhadores se inseria numa onda de protestos em defesa da jornada de oito horas. Era sobretudo o tempo de trabalho que estava em questão na ocasião; era a possibilidade de limitar uma jornada que se estendia por 14, 15, 16 horas; eram os direitos à sociabilidade, ao lazer, a criar os filhos, a estudar; era pelo direito a ter um mínimo de tempo livre e de dignidade que lutavam aquelas pessoas.

Nos dias de hoje, com os processos de flexibilização e com a intermitência correlata, a jornada laboral tem sido de 7x0 para parte do coletivo dos trabalhadores, como é o caso de muitos dos uberizados, que trabalham até quando conseguem, que saem de casa sem saber quanto vão ganhar no dia e sem saber que horas voltam — e se voltam, em razão dos inúmeros acidentes, no caso dos motoristas da Uber, por exemplo. Não há garantia alguma de rendimento, nem de tempo de jornada (um tipo de realidade muito bem retratada no filme Você não estava aqui, do diretor Ken Loach, de 2020). As plataformas e os dispositivos fazem com que seja possível trabalhar em qualquer tempo ou lugar.

A tecnologia, apesar de ser uma criação da humanidade, não tem realizado suas missões históricas prometidas: reduzir o tempo de trabalho; e melhorar a qualidade de vida. Pelo menos, não tem feito isto de modos igualitário e democrático. Os trabalhadores flexíveis precisam bater metas e ampliar os níveis de produtividade, mas nunca sabem o que vão receber. Trabalhadores e trabalhadoras nesta condição têm sido classificados como empreendedores, pelas grandes corporações, as quais tratam a precariedade, a informalidade e o desemprego como matérias-primas para desenvolver a tese do “empreendedor de si”. O empreendedorismo é a ideologia do nosso tempo. Trata-se de um termo antropofágico, que tem se apropriando de léxicos avançados, inovadores e progressistas para favorecer os agentes econômicos privilegiados.

No Brasil, a Reforma trabalhista de 2017, justificada pelo Custo Brasil, alterou mais de 100 dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). As formas de contratação se tornaram cada vez mais diversas: PJ; MEI; terceirizado; intermitente; freelancer; conta própria; autônomo; autoemprego; entre outros. Na prática, muitos destes trabalhadores oscilam entre as informalidades real e legal.

O impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff (PT) abriu as portas para a reforma trabalhista do ex-presidente Michel Temer (com a Lei n.º 13.467/2017). Igualmente, a “PEC do fim do mundo” limitou os investimentos públicos em educação, em saúde, em previdência e, a seguir, a reforma do ensino médio também impactou os/as filhos/as da classe trabalhadora — projetos estes de um documento neoliberal chamado Uma ponte para o futuro (PMDB, 2015). A Reforma Trabalhista alterou significativamente o sentido da CLT: negociado sobre o legislado; regulamentação do intermitente; restrição à justiça do trabalho; insalubridade flexibilizada; sindicatos atacados nas capacidades de negociação, de representação e de financiamento, entre outros. Começando com Temer, a reforma se consolida com o ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2023) (PL). E a promessa de que a mudança geraria mais empregos não se realizou (Cf. IBGE - Série Histórica do Desemprego, disponível em: https://www.ibge.gov.br), impactando muitas pessoas, com destaque para a juventude. Essas decisões políticas evidenciam que os golpes são ataques à democracia, que servem de pontes ao arrefecimento de direitos, como bem analisou Florestan Fernandes (1977).

Uma das primeiras medidas do ex-presidente Temer foi a terceirização total, a partir da qual não se diferem mais atividades meio e fim e se intensifica a terceirização também no setor público. Há profundas conexões entre as terceirizações e a ampliação das precariedades, como evidenciam os casos de trabalho análogo à escravidão em diferentes cadeias produtivas (por exemplo, o caso da colheita da uva na serra gaúcha, disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2025/02/04/mais-nove-trabalhadores-sao-resgatados-em-condicoes-analogas-a-escravidao-na-colheita-de-uva-no-rs/). As terceirizações irrestritas facilitam as condutas censuráveis, dificultam a fiscalização e estão relacionadas ao maior número de acidentes de trabalho.

O cenário laboral atual é de insegurança, de faltas de recompensa e de reconhecimento, levando também ao adoecimento mental, ao burnout, à depressão, quer dizer, às doenças da alma, de que trata Alves (2011). Tais elementos são ainda mais intensos na periferia do capitalismo, no sul do mundo, em que se localizam processos mais duros e mais intensos de superexploração.

A uberização, que tem caracterizado o mundo do trabalho, não é propriamente uma novidade numa periferia como o Brasil, marcada por uma informalidade constitutiva. Todavia, anos atrás, essa informalidade era vista como sinal de atraso a ser superado, aspecto que mudou nos discursos empresarial e político hegemônicos. Outra novidade são as plataformas e a intensificação técnica digital, que passou a organizar este processo. Hoje, com a uberizacão, a informalidade aparece como regra. O trabalhador é desprovido de direitos, mas controlado e disponível ao trabalho, arcando com os riscos da ocupação. Os meios técnicos digitais permitem o controle de uma multidão no tempo e no espaço, com dados que mapeiam, que organizam e que possibilitam uma vigilância constante. Nos dias de hoje, a vida cotidiana é marcada pelos léxicos gramaticais das plataformas, fato que se tornou ainda mais intenso no pós-pandemia de COVID-19: IA; robôs; redes sociais; automatização; home office; trabalho remoto; Big data; Internet das coisas; revolução 4.0; coworking; ciberindústria; etc.

O trabalho plataformizado atinge o coletivo dos trabalhadores e das trabalhadoras e tem impactado, por exemplo, o trabalho dos e das docentes nos diferentes níveis de formação. As presenças de computadores, de smartphones e de algoritmos que nunca param de notificar é intensa.

Há plataformas, nas quais é possível escolher professores, em que se tem a foto, a nota atribuída (a qual constitui reputação e ranking), o valor da aula, conforme a escolha da disciplina, o curso ou conteúdo. Nessa modalidade, a educação aparece como um produto, que está abertamente à venda; todo equipamento utilizado (computador, celular, câmera, espaço, Internet, energia elétrica) é por conta do professor; e a percentagem monetária para a plataforma é significativa. Alguns exemplos deste modelo são: Plural (disponível em: https://www.plurall.net/); Superprof (disponível em: https://www.superprof.com/); e Profes (disponível em: https://profes.com.br/) (acessos em abril de 2025).

Esses são casos extremos na docência, mas as plataformas e os dispositivos de redes têm se inserido no dia a dia laboral como um todo. Espera-se que o professor domine as redes sociais, saiba editar vídeos e responda aos inúmeros grupos de WhatsApp. Até mesmo as gestões escolar e universitária têm sido feitas, em grande medida, por meio destes grupos, nos quais as mensagens chegam a todo e qualquer momento. O/A professor/a não precisa visualizar, mas ele/a o fará, pois a mensagem está ali e pode ser importante. Não raro, se o/a professor/a demorar a responder, alguém pode ficar ansioso e entrar em contato por outro canal, como celular, e-mail, etc. Trata-se de uma demanda constante, sem regulação, que impõe a lógica da urgência permanente, pois tudo é para ontem. O/A docente ainda precisa ser gentil, compreensivo e sensível na contemplação destas demandas — sua exaustão fica em segundo plano —, afinal sempre há uma situação mais complicada para resolver.

Como parte da classe trabalhadora, os/as professores/as de todos os níveis (básico, técnico e universitário) estão sofrendo os impactos da plataformização e da flexibilidade laborais, na qual é possível trabalhar, a partir de quaisquer tempo e espaço — e é o que tem ocorrido. Por um lado, os gestores apresentam retóricas de respeito, de saúde e de qualidade de vida; por outro, o trabalho incessante extrapola a jornada regulamentar, sabidamente.

Apesar das vivências comuns, a classe trabalhadora está cada vez mais diversa e marcada por clivagens étnico-raciais, geracionais, etárias, de gênero, de sexualidade, de nacionalidade, entre outras. Para compreendê-la, é preciso reconhecer e entender esta pluralidade desigual.

A instabilidade atinge boa parte dos/as trabalhadores/as, tanto desempregados como assalariados. Os baixos salários, a queda do poder aquisitivo e, inclusive, a insegurança alimentar, tem atormentado a muitos, representando perdas na dignidade do trabalho, muito bem retratada, por exemplo, no filme Parasita (de 2019, dirigido por Bong Joon-Ho).

Do ponto de vista da organização política, os desafios são incontáveis, considerando os contextos de neoliberalismo, de extrema direita e de fake news. A respeito dos sindicatos, a organização coletiva é cada vez mais decisiva nos dias de hoje. Para desempenhar seu papel, contudo, o sindicato precisa compreender a pluralidade e as clivagens do coletivo de trabalhadores e trabalhadoras e atentar às questões econômicas, bem como às de identidade e de reconhecimento, articulando as lutas contra as formas de exploração e de opressão (González, 1979). Igualmente, o diálogo com os movimentos sociais e o debate sobre as políticas públicas são fundamentais, para que os sindicatos possam se manter como sujeitos da organização coletiva e da mudança social, de modo que nem um agente em posição de poder possa decidir unilateralmente as condições de vida dos/as trabalhadores/as.

Referências

ALVES, Giovanni. Trabalho e subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo: Boitempo, 2011..

FERNANDES, Florestan. Problema de conceituação das classes sociais na América Latina. In: ZENTENO, Raúl. As classes sociais na América Latina: problemas de conceituação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

GONZALEZ, Lélia. Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher. In: GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

Sobre o(a) autor(a)

SVG: autor Por Laura Senna Ferreira
Professora do departamento de Ciências Sociais da UFSM. Doutora em Sociologia

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