Bolsonaro sobrepõe ideologia à ética, diz filósofo da UFSM
Publicada em
05/08/20
Atualizada em
05/08/20 19h02m
1811 Visualizações
Professor Noeli Rossato analisa influência da religião na educação e em outros setores do governo

Durante a campanha eleitoral, o então candidato Jair Bolsonaro prometeu que os nomeados em seu governo atenderiam critérios técnicos, sem influência expressiva dos partidos. Entretanto, ao mesmo tempo que, inicialmente, se distanciou dos partidos ditos tradicionais, nomeando muitos militares em postos-chave, o Presidente também fez nomeações de militantes que acabaram por constituir o que a imprensa em geral chama de “ala ideológica”. Isso se comprova com vetos a nomes que surgiam para comandar determinadas áreas, como por exemplo, a da educação.
Para o professor Noeli Dutra Rossato, do departamento de Filosofia da UFSM, o que ocorreu, na prática, é algo que sempre foi atribuído à esquerda: a indicação para cargos através de referenciais ideológicos (de direita e conservadores). “É isso que resulta da sobreposição da ideologia sobre a ética”, diz o docente.
Para Rossato, o que o governo Bolsonaro tem feito é indicar membros ao governo com base em critérios ideológicos pouco claros. E, com isso, avalia ele, “temos certo favorecimento a setores religiosos evangélicos, mas também a militares conservadores, reformados em sua maioria”.
Além disso, complementa o filósofo, nomeia também políticos de conduta não tão limpa e de moral não tão ilibada. “Penso que o impacto mais forte é o de desrespeito à sociedade como um todo, pois a sociedade brasileira que outrora elegeu o centro, depois a esquerda e agora a direita é a mesma. E, com certeza, o que fez pender para a direita não foi o desejo de desrespeitar minorias, de mentir e odiar o próximo”.
Estado laico e a influência cristã
Uma das questões feita ao professor, para a entrevista, refere-se ao tema do “Estado laico”, que consta no artigo 19 da Constituição Federal, promulgada em 1988. Quando o presidente Bolsonaro fala em nomear para o Supremo Tribunal Federal (STF) um ministro “terrivelmente evangélico”, ele estaria em total desacordo com a laicidade do Estado, já que quer definir uma atuação na Corte Suprema baseada em princípios religiosos e não na qualificação jurídica.
No entendimento do professor da UFSM, apesar de eleito pela maioria, o governo atual está composto por “uma minoria fundamentalista que, em alguns casos, usa a denominação evangélica como uma marca ou uma identidade eticamente consumível no mercado das redes sociais, e que esconde a verdadeira identidade corrompida, fascista e, sobretudo, não evangélica de muito de seus integrantes”. Rossato destaca que “a principal mensagem do evangelho parece ser o amar o próximo como a ti mesmo”, mas, “a principal mensagem veiculada pelas milícias digitais (e também reais) do governo, que propagam o discurso de ódio de muitos dos que se autodenominam evangélicos, é a eliminação do outro - negro, homossexual, feminino, científico, esquerdista- e o consequente ódio ao próximo”.
MEC, religião e interesses privados
Noeli Rossato também foi perguntado sobre a nomeação do terceiro ministro para a pasta da educação, em pouco mais de um ano e meio do governo Bolsonaro. Desde o momento em que foi anunciado, Milton Ribeiro já passou a enfrentar críticas, tendo em vista as suas antigas opiniões evangélicas, externadas antes ou durante o cargo de reitor de uma universidade presbiteriana.
Para o professor da UFSM, nesta altura do governo, depois dos dois desastres anteriores, que ocuparam a pasta do MEC, parece que “fazer o mínimo ou não fazer nada é melhor do que fazer algo”. Contudo, pondera Rossato, “pelo menos que prevaleça o lado educador sobre o de pastor evangélico”. Na análise que faz, Rossato acredita “que a educação, assim como o meio ambiente, está entregue aos interesses do capital privado. E, se isso é verdade, todo esforço institucional será no sentido de destruir os avanços que a universidade pública e gratuita teve nas últimas décadas. Neste caso, o religioso está do lado dos interesses privados”.
Acompanhe a seguir, a íntegra da entrevista do professor de Filosofia da UFSM, Noeli Dutra Rossato, à assessoria de imprensa da Sedufsm.
Pergunta- A prescrição na Carta Magna do país sobre a laicidade do Estado, e ressalte-se, também no que se refere à educação, parece estar sob dúvida. O Presidente Bolsonaro já disse que quer nomear um ministro do STF que seja “terrivelmente evangélico”. Que tipo de impacto esse tipo de postura tem para a concretização de um Estado laico, para além da legislação?
Resposta- O paradoxo do governo atual é o fato de ter sido eleito pela maioria, como requer uma democracia, e querer governar para uma minoria, próprio dos governos aristocráticos, tirânicos e ditatoriais, como indicam as declarações e ações de seus integrantes, não raras vezes fora da lei. O caso citado acima indica o favorecimento de uma minoria declaradamente evangélica. A questão é quem se inclui e quem se exclui dessa minoria. O advérbio “terrivelmente” parece mais se adequar à facção fundamentalista dos evangélicos. E aí reside o maior problema: apesar de eleito pela maioria, o governo atual está composto por uma minoria fundamentalista que, em alguns casos, usa a denominação evangélica como uma marca ou uma identidade eticamente consumível no mercado das redes sociais, e que esconde a verdadeira identidade corrompida, fascista e, sobretudo, não evangélica de muito de seus integrantes. A principal mensagem do evangelho parece ser o amar o próximo como a ti mesmo. A principal mensagem veiculada pelas milícias digitais (e também reais), que propagam o discurso de ódio de muitos dos que se autodenominam evangélicos, é a eliminação do outro (negro, homossexual, feminino, científico, esquerdista) e o consequente ódio ao próximo. Não há nada mais contrário ao evangelho que o discurso de ódio do atual governo. Não há nada mais contrário à máxima evangélica adotada pelo presidente da república: conhecereis a verdade e a verdade vos libertará, que a divulgação de fake news
A questão da educação, assim como a do meio ambiente, passa pelo favorecimento a determinados setores do capital que deixaram de lucrar com o processo em curso de uma maior democratização do acesso ao ensino público e gratuito, facultado pelos últimos governos. Penso que não se trata de adotar uma ou outra confissão religiosa como parâmetro para a educação brasileira. Pelo menos até agora não tocaram nisso.
Pergunta- O presidente Bolsonaro, quando questionado sobre o tema do Estado laico, responde: “O Estado é laico, mas eu sou cristão”. Aos olhos das pessoas leigas isso pode parecer normal, inofensivo, já que a maioria da população se declara cristã. Qual a sua avaliação sobre essa questão?
Resposta- Esta questão remete à separação entre Igreja e Estado. A união entre Igreja e Estado fazia parte do pacto colonial em que as potências europeias traziam a cruz e a espada como alternativas para os povos “conquistados” da América. O Estado laico moderno se caracterizou pela separação em relação à Igreja. Na verdade, a separação consistia em uma divisão de trabalho em que compete ao estado-nação determinados assuntos, e às igrejas outros. Dentro desta divisão de trabalho, o estado laico se encarregava de levar adiante determinadas políticas públicas; e as igrejas atuariam no espaço privado. Os conflitos surgem quando determinados temas são reivindicados por ambos os lados. O divórcio, por exemplo, não era tão problemático para o estado; em termos religiosos, no entanto, colocava em risco o dogma da indissolubilidade do matrimônio e da família. A questão de gênero volta hoje como um desses temas de dupla disputa. Outro exemplo é a reforma agrária ou a política partidária, que sabidamente eram questões do estado, quando algumas igrejas começam a reivindicar uma melhor divisão da terra e a opinar sobre a política partidária, irão receber como resposta que a igreja não deve se meter em política. Do mesmo modo, algumas igrejas tinham o monopólio da educação no período colonial, com o beneplácito do estado. Parte do problema hoje parece residir na crise desta divisão moderna entre igreja e estado. No plano do estado-nação, as recentes tentativas de soluções, guiadas pelos modelos das identidades coletivas nacionais, não só fracassaram como também resultaram no genocídio de grupos étnicos não hegemônicos. De igual modo, o fundamentalismo de qualquer confissão religiosa não alcança diferente resultado. O fundamentalismo contrasta com o ecumenismo e o simples respeito à liberdade religiosa, inclusive para não ter religião alguma ou para ser ateu.
Pergunta- E depois de dois ministros da Educação que pouco falavam sobre políticas educacionais, mas assumiram, posturas ofensivas, de se referir a universidades públicas como “balbúrdia”, locais de plantação de maconha, agora teremos um ministro de uma universidade particular/confessional, Milton Ribeiro, que se assume evangélico. É possível prever o que será o futuro do MEC?
Milton Ribeiro, atual ministro da Educação
Resposta- O primeiro ministro da educação, que no final dos anos 80 atuou em um curso de nossa UFSM (Ricardo Veléz Rodrigues), parece ter saído mais por inércia do que por fazer algo. O que fez foi falar alguns disparates ideológicos que cheiravam à caserna e à sacristia. O segundo ficará marcado pelo recalque de estereótipos pouco republicanos, racistas e sexistas, e pela divulgação de notícias falsas nas redes sociais. Esperamos pelo terceiro agora. Nesta altura, infelizmente, parece que fazer o mínimo ou não fazer nada é melhor do que fazer algo. Mas que, pelo menos, prevaleça o lado educador sobre o de pastor evangélico. De qualquer forma, parece que a educação, assim como o meio ambiente, está entregue aos interesses do capital privado; e, se isso é verdade, todo esforço institucional será no sentido de destruir os avanços que a universidade pública e gratuita teve nas últimas décadas. Neste caso, o religioso está do lado dos interesses privados. E isso pode até unir setores ideologicamente antagônicos, pois, historicamente, as igrejas sempre se mostraram como fortes opositoras da educação pública e gratuita.
Pergunta- Um aspecto a ser refletido é que, quando se fala na influência da religião cristã, observa-se que são as alas consideradas mais à direita, conservadoras, tanto do catolicismo quanto do evangelismo, no governo Bolsonaro. Ou seja, os valores pregados pelo governo estão vinculados a esse setor. Que tipo de impacto para a sociedade como um todo?
Resposta- Seria estranho, senão contraditório, que um governo de extrema direita tivesse entre seus integrantes algum religioso católico ou evangélico de esquerda ou de centro-esquerda. Isso parece óbvio. O que não era tão óbvio antes da eleição do atual governo é que a escolha de seus integrantes não seguiria critérios técnicos, como foi defendido em campanha, mas puramente ideológicos. Este é um pecado que em geral foi atribuído à esquerda. Se alguém era militante de esquerda já era suficiente para ser moralmente bom e funcionalmente competente. É isso que resulta da sobreposição da ideologia sobre a ética. Com base em critérios ideológicos não tão claros, temos certo favorecimento a setores religiosos evangélicos, mas também a militares conservadores, reformados em sua maioria; e a políticos de conduta não tão limpa e de moral não tão ilibada assim. Penso que o impacto mais forte é o de desrespeito à sociedade como um todo. A sociedade brasileira que outrora elegeu o centro, depois a esquerda e agora a direita é a mesma. E, com certeza, o que fez pender para a direita não foi o desejo de desrespeitar minorias, de mentir e odiar o próximo. Tradicionalmente, a direita sempre foi sensível e tolerante em relação a esses temas A intolerância, desrespeito e falta de sensibilidade são atributos dos regimes totalitários, sejam eles de direita ou de esquerda.
Texto: Fritz R. Nunes
Fotos: EBC; diplomatique e arquivo pessoal
Assessoria de imprensa da Sedufsm
Galeria de fotos na notícia
