Crime e religião se unem ao mercado para ocupar lacunas deixadas pelo Estado
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Atualizada em
24/11/23 18h42m
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Bruno Paes Manso falou sobre “Fé, milícia e política” nesta quinta, 23, durante a 82ª edição do Cultura na Sedufsm
Como entender a criminalidade no Brasil e seus diversos meandros, que se estendem a facções, milícias, e hoje ganham novos contornos, associando-se à política e à religião? O jornalista, cientista político e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade Estadual de São Paulo (USP), Bruno Paes Manso, respondeu um pouco em sua palestra que fez parte da 82ª edição do Cultura na Sedufsm, com o título de “Fé, milícia e política”. O evento ocorreu na noite desta quinta, 23, no Auditório Sérgio Pires, no campus sede da UFSM, e teve a mesa de trabalhos coordenada pela diretora de Comunicação da Sedufsm, Neila Baldi.
Paes Manso é um estudioso da violência no Brasil, e suas causas, há mais de duas décadas. Produziu livros tratando da ascensão, a partir de São Paulo, do PCC (Primeiro Comando da Capital), abordando também a “república das milícias” a partir dos territórios no Rio de Janeiro, e, mais recentemente, através de “A fé e o fuzil”, se debruça na imbricação entre religião e crime.
O pesquisador começou falando sobre um quadro que existia, em São Paulo, até meados dos anos 1990, com violência extrema, em que as estatísticas apontavam 100 chacinas (mais de três pessoas mortas de uma vez só) por ano. É nesse cenário que, em 1993, pouco tempo após o Massacre do Carandiru (em 1992, 111 presos foram mortos pela PM paulista), que surge o PCC que, conforme o jornalista, assume um discurso de valorização da masculinidade periférica e contra a opressão do sistema, dando um rumo diferente para a criminalidade de até então.
O PCC vem como uma espécie de “sindicato do crime”, crescendo nas “brechas do sistema” e buscando “colocar ordem na casa”. Não era interessante para criminosos chamarem a atenção do sistema policial, de segurança pública, como vinha acontecendo, com muitos assassinatos, chacinas, que resultavam dessa disputa entre gangues. Dessa forma, explica Bruno Manso (foto abaixo), o PCC age como uma espécie de “agência reguladora” do crime em São Paulo, criando regras, que se tornaram necessárias para reduzir conflitos entre grupos criminosos, o que beneficia a todos, pois aumenta a lucratividade.
‘Network’
Nesse contexto de mudanças na gestão do crime, um aparato tecnológico vai contribuir sobremaneira nesse processo. Conforme Manso, em meados de 1998/99, o advento da popularização dos aparelhos celulares possibilitou a criação de uma espécie de ‘Network’ (rede de contatos) nos presídios, facilitando muito a ação dos criminosos a partir dos próprios presídios.
O que colabora nesse aumento do poder dos grupos criminosos, segundo o jornalista e pesquisador, é também o fato de os governos não investirem de forma suficiente no sistema prisional, até mesmo porque parcela importante da sociedade vê esse tipo de investimento como gasto, como um fardo a ser pago. O efeito disso, explica Manso, é que estimula um modelo autogestionário do crime dentro das penitenciárias.
Por outro lado, é através dos chefões do crime organizado, destacando, no caso de São Paulo, o PCC, que se dissemina um “discurso de sedução” para a juventude. “É melhor morrer antes dos 25 anos do que se submeter ao sistema” é uma das filosofias apregoadas. Bruno Manso faz uma analogia com certos grupos que pregam uma ideologia religiosa, de visão mais fanatizada, por isso atribui a expressão “jihadistas”. No entanto, diz ele, quando muitos desses criminosos passam anos presos, chega a velhice, muitos se arrependem, e a conversão religiosa (especialmente o evangelismo) cumpre uma função importante nesse processo.
O crime no Rio de Janeiro
Quando aborda a situação do Rio de Janeiro, Bruno Paes Manso faz uma breve histórico, lembrando que a criminalidade está associada a aspectos como a contravenção do jogo do bicho, pelo menos desde a década de 1950. O acirramento, no entanto, se dá a partir do surgimento do Comando Vermelho que, segundo ele, se dá em 1979. Com o fim do regime militar, em 1985, destaca o jornalista, aqueles policiais antes envolvidos com a repressão, são afastados, e acabam por ir assessorar grupos criminosos.
A milícia no Rio de Janeiro, explica ele, se forma no início dos anos 2000, a partir da zona oeste, com grupos paralimilitares que usavam como argumento a autodefesa contra traficantes. “Eram estratégias territoriais de defesa, argumentavam os milicianos”, conforme Manso. Esse cenário passa a ser descortinado com mais clareza em 2006, com a CPI das Milícias, comandada pelo então deputado estadual Marcelo Freixo, à época, filiado ao Psol.
Descobriu-se, explica o pesquisador do NEV, que a cidade do Rio vivenciava um período quase que medieval ou de pré-república, com a divisão da cidade em vários “reinos”. Diferente de São Paulo, em que o PCC usa um discurso classista (ladrão contra o sistema), a capital fluminense não possui uma “agência reguladora do crime”, o que coloca, na prática, facções contra facções, se matando em disputa de territórios. Além do Terceiro Comando, comenta Manso, houve ainda um racha que gerou o Terceiro Comando Puro (TCP), em 2002.
Política e religião
Quando se vislumbra esse quadro caótico da violência, que se irradia nas estruturas da institucionalidade estatal, Bruno Paes Manso analisa que isso tem muito a ver com o ceticismo da população com a política e, ao mesmo tempo, com a descrença na capacidade de o Estado responder às questões que afligem a sociedade.
E é nessa conjuntura que a religião aparece como uma espécie de tábua de salvação. Na medida em que o Estado não responde às necessidades cruciais da população, o evangelismo “dá um propósito de vida para os pobres”, explica o pesquisador.
Enquanto a esquerda, através dos sindicatos, dos partidos políticos, prometia décadas atrás, a transformação do Brasil em uma espécie de social democracia europeia, mas não alcançou esse intento, o que vem avançando é a “teoria da prosperidade” das igrejas evangélicas que, na prática, significa a sobrevivência individual, com mercado, sem Estado.
Muitas dúvidas foram levantadas pelo público sobre as alternativas para esse cenário do Brasil, que é complexo, tendo em vista que à criminalidade se soma também a questão da religião. Muitas pessoas se perguntam: como explicar que a religião possa usar, além da bíblia, que seria uma simbologia de paz, defender também a propagação de armas. A explicação do pesquisador passa por uma visão bem simples, que é a da guerra cultural, propagada hoje por grupos através, especialmente, das redes sociais. “O mal está dominando o mundo e as pessoas de bem precisam vencê-lo”. Para tanto, tudo é válido, inclusive o uso da violência.
Bruno Paes Manso, ao final de sua palestra, brincou que estava com dificuldade de encerrar a exposição com um viés mais otimista. Entretanto, mesmo sem respostas para a complexidade da violência que se espalhou pelo país, através das drogas, do sistema prisional, o escritor acredita que esse quadro pode melhorar se for pensado a partir de soluções através do Estado, ou seja, via políticas públicas. Na visão dele, a subserviência ao mercado não traz uma boa solução. Contudo, o desafio é convencer as pessoas de que pode haver um projeto de sociedade, de nação.
Ao final do evento, a sessão de autógrafos
Na próxima semana vamos disponibilizar o vídeo com a íntegra da palestra.
Texto: Fritz R. Nunes
Fotos: Rafael Balbueno e Karoline Rosa
Assessoria de imprensa da Sedufsm