O 11 de setembro da democracia brasileira SVG: calendario Publicada em 24/09/2025 SVG: views 329 Visualizações

A democracia brasileira não será a mesma após o 11 de setembro. Como afirmou o professor Wilson Gomes: “Quase metade do país, pelo menos neste momento, não consegue perceber o alcance histórico do que ocorreu no Supremo Tribunal Federal no último 11 de setembro”.

Há muita raiva no ar, há muito ressentimento, há a convicção disseminada de que se tratou de mais uma batalha na guerra entre dois lados e uma enorme vontade de revanche. Isso é lamentável!

Infelizmente, é o “natural”: nas atuais circunstâncias políticas do país, dificilmente as coisas poderiam ser vistas de outro modo. E não só no Brasil.

“São tempos muito difíceis, não apenas por aqui. A monstruosa onda antidemocrática e belicista que percorre o mundo, da América ao Oriente, aliada à crescente violência política e criminal nos deixa a sensação de que estamos na antessala de uma catástrofe de grandes proporções. Não há dia em que não sejamos tocados pela barbárie em suas mais diversas manifestações, nos mais diversos territórios, nas mais diferentes situações”, pondera Marcos Antônio Gonçalves.

Mas a percepção pública sobre o 11 de setembro não pode obscurecer os fatos. E o fato fundamental é que 11 de setembro de 2025, cedo ou tarde, entrará para a memória nacional como um dos dias mais decisivos da curta e intermitente história da nossa democracia. Foi nesse dia que o Supremo Tribunal Federal, diante das pressões sociais e políticas, reafirmou seu papel de guardião da Constituição e, por consequência, marcou uma ruptura simbólica com a impunidade histórica das elites que atentaram contra a ordem democrática.

Ditaduras podem parecer abstrações distantes, sobretudo depois que passam. As pessoas esquecem. Ou criam narrativas ficcionais sobre a mesma: “Bons tempos”! “O Brasil era muito melhor”. “A gente podia ficar na rua até mais tarde”. “Não havia corrupção”. Essas frases, repetidas com aparente nostalgia, revelam mais sobre a memória seletiva do que sobre a realidade dos períodos autoritários.

O mesmo acontece com muitas experiências traumáticas — tragédias, guerras, epidemias. A gente ativamente se empenha em não lembrar, para não reviver a angústia e a dor. Ou revive apenas flashbacks positivos.

Lembremos das marcas deixadas pela pandemia de Covid, por exemplo — os mortos na família, o isolamento das pessoas queridas, a ansiedade sobre o futuro — já parecem remotas, embora tudo tenha acontecido há tão pouco tempo. Esse mecanismo de esquecimento coletivo, embora compreensível, é perigoso: abre espaço para que erros se repitam, uma vez que o aprendizado histórico se esvai.

Só quando encarnamos essas abstrações na vida de pessoas concretas é que podemos ter uma noção do que realmente significaram. A democracia, quando posta à prova, mostra que não é um conceito abstrato, mas uma experiência vivida, que toca diretamente direitos, liberdades e expectativas de vida.

As novas gerações, que chegaram à idade adulta em plena expansão mundial dos regimes democráticos e da ideia da democracia como valor universal, costumam se enganar ao pensar que este é um regime quase natural, parte da paisagem do mundo, o destino inevitável da civilização. Ledo engano! A história recente mostra que a democracia não é um dado, mas uma conquista frágil e constantemente ameaçada.

Até mesmo “o farol da democracia no mundo” passa por um momento de crise, de erosão democrática. É inegável a ofensiva de Trump contra universidades de ponta, as constantes ameaças de revogar licença de emissoras americanas que façam críticas ao seu governo, perseguição contra jornalistas, proíbe profissionais de cobertura, ofende críticos e quer acabar com o sigilo de fontes. É uma escalada autoritária sem precedente na História dos Estados Unidos. Esse exemplo mostra que nem as democracias mais consolidadas estão imunes ao populismo, à radicalização e à corrosão institucional.

No Brasil, as ditaduras e as tentativas de golpe de Estado fazem parte da paisagem política brasileira. Desde o Império, passando pela República Velha, o Estado Novo, a ditadura militar de 1964 e até os episódios recentes, vê-se um fio condutor de instabilidade.

A democracia é que tem sido a excepcionalidade, um intervalo sempre provisório entre um golpe e outro. “Não vivemos propriamente períodos autoritários interrompendo a democracia, mas breves períodos democráticos entre longos ciclos de autocracia”. Essa percepção ajuda a entender por que a decisão do STF em 11 de setembro de 2025 carrega um peso histórico inédito: pela primeira vez, altos responsáveis por um atentado contra a ordem democrática foram julgados e responsabilizados, rompendo com a lógica da impunidade.

Duas, três ditaduras no arco de uma vida — e a sensação de que a democracia pode ser interrompida a qualquer momento, porque boa parte do sistema político e uma multidão de brasileiros não fazem a menor questão dela — é um absurdo. Nada disso é compatível com um projeto de civilização nem com os valores que julgamos cultivar.

Uma geração inteira presenciou o braço pesado do autoritarismo arrebentar a democracia várias vezes no século passado. Viu autocratas exigirem ser chamados de revolucionários. Viu o ditador de ontem voltar a ser eleito pelo voto popular sem jamais responder por seus crimes. Viu anistias e “tentativas de reconciliação nacional” para ditadores virarem incentivos para golpes futuros. O que nunca viu foram generais, almirantes e autoridades de alta patente sentados no banco dos réus, submetidos ao devido processo e condenados por golpe militar. Eu próprio nunca tinha visto um ex-presidente golpista, com enorme apoio popular, chamado a responder por seus crimes e condenado por eles.

Isso levou uma vida para acontecer. A geração dos meus avôs sequer pôde assistir a algo assim. O que se inaugurou, portanto, é mais do que uma decisão judicial: é um precedente histórico, que pode servir de barreira contra a reincidência da violência política no futuro.

“Então, me desculpem os que enxergam o julgamento apenas como mais um episódio da guerra entre facções políticas: para a minha geração, e da perspectiva da nossa sempre precária democracia, o 11 de setembro foi, sim, um dia de cair no choro. Foi o renascer da expectativa de que a nossa experiência democrática deixe de ser apenas intervalo entre autocracias, para se tornar, enfim, o modo como nós, brasileiros, escolhemos viver” — Wilson Gomes.
 

(* O artigo foi assinado em conjunto com Pietra Lemberck, estudante de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria, integrante do Grupo de Teoria, Arte e Política (GTAP) e assistente editorial da revista InterAção).