O crime organizado no Brasil e o conceito de narcoestado SVG: calendario Publicada em 12/11/2025 SVG: views 224 Visualizações

O ano de 2025 tem sido ativo em eventos que reforçam o diagnóstico que o crime organizado ganhou poder e influência no Brasil.

assassinato de um ex-delegado em São Paulo, a morte de um delator do PCC por policiais militares no aeroporto de Guarulhos, a expansão dos negócios do grupo paulista em fintechs na Faria Lima, o êxodo forçado dos moradores de um vilarejo no Ceará em meio à guerra entre duas facções, o intercâmbio no Rio de faccionados de outras regiões do país nos complexos da Penha e do Alemão, evidenciado pela  megaoperação policial mais letal da história do país, são apenas alguns dos casos de grande repercussão que levaram parte dos brasileiros a questionar se o país estaria se encaminhando para virar um "narcoestado". Estamos virando um “narcoestado”?

O que seria um narcoestado?

Especialistas em segurança pública afirmam que não é possível falar em narcoestado quando se discute o Brasil porque o termo não descreve os fenômenos que se observam no país. O pesquisador americano Benjamin Lessing, que há mais de uma década estuda organizações criminosas na América Latina disse que “é um pouco exagerado esse termo”. "É difícil de achar um exemplo, porque o que seria um narcoestado?

Se o Estado mesmo estivesse plenamente engajado no tráfico de drogas, não seria um Estado…", complementa Lessing.

Na visão de Lessing, o caso da Venezuela seria o que atualmente mais se aproximaria da definição, mas apenas se fosse comprovada a acusação que vem sendo feita por figuras como o presidente americano, Donald Trump, do envolvimento de agentes do Estado — no caso, membros das Forças Armadas — no tráfico de drogas, o que não se verifica até o momento. À princípio, estamos bem longe de sermos um narcoestado.

Discursos e narrativas alinhadas

De fato, o que chama atenção são as falas do secretário de Defesa dos EUA, Pete Hegseth, ao detalhar ataques aéreos americanos a embarcações no mar do Caribe e no Pacífico, acusadas pelos EUA de estarem traficando drogas para o país são similares a de congressistas brasileiros e a do governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro.

Os governos dos EUA e do Estado do Rio de Janeiro usam o mesmo termo para designar os traficantes: narcoterroristas.

Para eles, traficantes de drogas agem como terroristas ao usar violência desmedida na busca por seus objetivos.

Na prática, qual é a vantagem de se classificar um grupo como terrorista, em vez de organização criminosa?

Segundo o relator especial da ONU sobre Direitos Humanos e Contraterrorismo, Ben Saul, ao classificar facções como terroristas, os governos podem em tese ganhar maiores poderes legais para combater as organizações.

"A legislação antiterrorista geralmente concede poderes excepcionais em termos de coleta de informações e poderes policiais relacionados a diversos tipos de crimes, não apenas os atos terroristas ofensivos", explica o relator especial da ONU.

"A classificação de grupos ou entidades inteiras como grupos terroristas frequentemente leva ao congelamento e confisco de bens", finaliza Saul.
Mas ele aponta que — “além do erro jurídico de se misturar conceitos diferentes — há sérios riscos de deterioração de direitos humanos”.

"O assassinato de 'narcoterroristas' equivale à justiça pelas próprias mãos, própria de um Estado gângster”. É o que vimos na Megaoperação no Rio de Janeiro.

As discussões no Congresso Nacional

No Brasil, o Congresso está discutindo pelo menos dois projetos de lei que ampliam o conceito de terrorismo previsto na Lei Antiterrorismo de 2016 para incluir o tráfico de drogas.

A Lei Antiterrorismo de 2016 afirma que "o terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública".


O projeto de lei 724/2025, do Coronel Meira (PL-PE), avançou este mês na Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados e propõe ampliar essa definição para incluir narcoterrorismo.

"Ataques a ônibus, escolas, batalhões, delegacias e até hospitais têm a finalidade de gerar terror social e paralisar a resposta estatal. É exatamente este o conceito jurídico de terrorismo: violência com o intuito de causar pânico e desorganização coletiva", diz o relator do projeto, o deputado Fabio Costa (PP-AL).

O projeto de lei 1283/2025, do deputado Danilo Forte (União Brasil-CE), estende "a aplicação da lei a organizações criminosas e a milícias privadas que realizem atos de terrorismo".

O secretário de Segurança de São Paulo, Guilherme Derrite se afastou do seu cargo e voltou a ocupar a vaga de deputado para relatar esse projeto, que teve pedido de trâmite de urgência aprovado no começo do ano.

Governadores de oposição ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva já manifestaram apoio a mudar a lei para tratar traficantes como terroristas.

O Consórcio da Paz

Os governadores formaram na quinta-feira – dia 6 de novembro - o que chamam de "Consórcio da Paz" — um projeto de integração para trocar informações de inteligência, prestar apoio financeiro e de contingente policial no combate ao crime organizado.

Participam do consórcio, além do governador do Rio de Janeiro, Claudio Castro (PL), os governadores Romeu Zema (Novo), de Minas Gerais, Jorginho Mello (PL), de Santa Catarina, Eduardo Riedel (Progressistas), do Mato Grosso do Sul, Ronaldo Caiado (União Brasil), de Goiás e de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos). A vice-governadora do Distrito Federal, Celina Leão (Progressistas), também participou de uma reunião do consórcio.

Crime organizado e terrorismo são a mesma coisa?

Após a megaoperação no Rio de Janeiro, os governos de Argentina e Paraguai anunciaram que passaram a classificar o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital (PCC) como grupos terroristas.

"Essas organizações transcendem a criminalidade comum; são verdadeiros terroristas que ameaçam a vida das pessoas e a soberania do país", disse o comandante das Forças Armadas do Paraguai, Cíbar Benítez.
O relator especial da ONU sobre Direitos Humanos e Contraterrorismo, Ben Saul diverge desse movimento de classificar organizações criminosas como entidades terroristas. "Nossa visão é que o terrorismo é essencialmente violência política, enquanto o crime organizado, segundo a Convenção das Nações Unidas sobre o Crime Organizado Transnacional de 2000, é definido essencialmente como crime com fins lucrativos ou por outro benefício material", explica Saul.

"Portanto, nossa forte recomendação é que o crime organizado e o terrorismo sejam mantidos amplamente separados como conceitos jurídicos”, reitera Saul.

Ainda segundo o relator especial da ONU, "narcoterrorismo" não existe enquanto um conceito jurídico — trata-se, sim, de um rótulo político.
"O termo 'narcoterrorista' não é um termo jurídico. É apenas um rótulo político usado para tentar desacreditar e deslegitimar grupos de que você não gosta. Esse termo não diz nada sobre o aspecto legal dessas questões, mas está sendo usado cada vez mais".

Saul diz que o que determina juridicamente se um grupo é terrorista ou se ele é uma facção criminosa é a natureza da atividade — e não o nível de ameaça à segurança nacional ou o grau de violência ou sofisticação.
Apesar disso, recentemente o termo passou a ser usado por governos contra outras organizações criminosas, segundo o relator da ONU.

"Acho que é um fenômeno bastante recente ver vários países das Américas começando a classificar gangues e cartéis como grupos terroristas, simplesmente por praticarem o que é essencialmente atividade criminosa organizada. É o caso de Canadá, EUA, Honduras, Equador e Argentina", diz Saul.

A direita e o apelo popular

Para Rafael Alcadipani, professor da Fundação Getúlio Vargas e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (ONG apartidária que reúne especialistas na área), as facções brasileiras não se enquadram na definição de terrorismo — por não possuírem motivações políticas e ideológicas.

"O Comando Vermelho ou o PCC não têm interesse em virar presidente do Brasil. Eles não têm interesse em tomar o poder ou em uma pauta ideológica. Eles negociam cocaína, eles negociam o crime", diz.

Alcadipani acredita que o alto poder de fogo e sofisticação desses grupos faz com que muitos associem suas atividades ao terrorismo.
"Os narcotraficantes utilizam algumas técnicas semelhantes aos terroristas", diz.

"O poderio bélico que eles têm de fato não é trivial. Ou o domínio de território como acontece no Rio de Janeiro e em São Paulo e também as ações de atentado contra autoridades, como no caso do doutor Ruy Fontes."
Ele entende que na disputa pela opinião pública, o argumento de equiparar traficantes de drogas a terroristas possui muito apelo popular.

"No imaginário popular, quando você fala em terrorismo, você lembra de Bin Laden, Torres Gêmeas, carro bomba. Quando eu acesso esse tipo de simbolismo, eu passo uma impressão para a população de que estou fazendo alguma coisa. Nós estamos dando o nome para esses bandidos malditos. Eles são terroristas mesmo. Eu acho que a direita é muito boa e competente em utilizar esse tipo de recurso simbólico no discurso público. Eles fazem isso muito bem e ganham eleições no mundo inteiro. E eu acho que a esquerda é incompetente para disputar essa narrativa", pondera o professor Rafael Alcadipani.

De fato, a Direita no Brasil e no mundo consegue moldar o sentimento público com muita facilidade. E quem molda o sentimento público, ganha eleições e se perpetua no poder.